Revisionismo histórico: exercício crítico de compreensão da realidade ou negacionismo histórico ?

 As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.

De acordo com Rollemberg e Martins Cordeiro, o termo revisionismo adquiriu, especialmente ao longo do século XX, um certo nível de polissemia: em certas alturas, era visto a partir de um prisma mais positivo, noutras de forma mais pejorativa; noutros casos, podia ainda ser instrumentalizado ao serviço de disputas políticas, académicas e/ou ideológicas. No limite, esta multitude do termo ora se aproximava ora se afastava da ideia de negação. Para as autoras, a ideia de revisionismo refere-se a possíveis iniciativas de revisitar e rever interpretações de fatos e processos passados; negacionismo, por sua vez, a iniciativas de negá-los. Desta forma, “o revisionismo é esclarecedor e indispensável, na produção do conhecimento histórico, enquanto o negacionismo é funesto e obscurantista, a própria negação da História”. (Rollemberg e Martins Cordeiro, 2021)

Na mesma linha de pensamento, o historiador Enzo Traverso classifica o termo revisionismo como sendo uma palavra camaleónica, dado que abarca diferentes significados, é utilizada de múltiplas formas e com objetivos diferentes. Segundo o autor, podemos identificar três momentos principais na história do conceito de revisionismo: uma controvérsia marxista, um cisma comunista e uma série de debates historiográficos que ocorrem posteriormente à II Guerra Mundial. Por conseguinte, o termo é introduzido no vocabulário da cultura política moderna em finais do século XIX, através de um debate que se iniciou no seio da social-democracia europeia, mas que logo se estendeu a todo o movimento socialista internacional. (Soutelo, 2015)

Outro pensador de referência dentro desta temática é Domenico Losurdo, que considera como o fio condutor da releitura do mundo contemporâneo a liquidação da tradição revolucionária, desde 1789 (com a Revolução Francesa) até hoje. Por conseguinte, para Losurdo a origem do revisionismo histórico como corrente de pensamento político remete-nos para o contexto inicial de Guerra Fria. Neste contexto, dá-se o desenvolvimento de várias interpretações históricas no meio intelectual, sendo estas orientadas em dois sentidos principais. Por um lado, dá-se uma reavaliação da Revolução Francesa – e, por extensão, da Revolução Russa – num juízo condenatório que associa jacobinismo e bolchevismo dentro de uma mesma categoria. Por outro lado, há uma releitura dos conflitos mundiais – “uma vez que a liquidação da tradição revolucionária obscurece a ideologia justificadora destes conflitos, fascismo e nacional-socialismo ganham uma luz mais favorável e o mérito da oposição ao comunismo; assim, a modificação da perspetiva de análise sobre a II Guerra Mundial – fixando-se o foco na ofensiva comunista – implica uma relativização e mesmo desculpabilização do nazifascismo.” (Soutelo, 2014)

Para além de situar historicamente o revisionismo histórico, Losurdo também identifica e destaca o revisionismo histórico enquanto estudo de reinterpretação que aniquila a tradição revolucionária e recupera a tradição colonial. Este pressuposto não só serviu para deslegitimar as revoluções anticoloniais como também permitiu transformar os Estados Unidos em herdeiros legítimos do Império Britânico, mensageiros da democracia e defensores de uma nova ordem mundial. Desta forma, de acordo com a tese de Losurdo, “as reais motivações dos revisionistas pouco têm a ver com o esforço para um melhor entendimento do passado; em vez disso, baseiam-se nas circunstâncias do presente e nas necessidades ideológicas das classes políticas”. (Tolêdo, 2017)

Luciana Soutelo afirma que, do ponto de vista teórico, o revisionismo histórico define-se a partir do ataque ao pensamento marxista e à tradição revolucionária, que começa em meados do século XX e encontra um novo impulso a partir das décadas de 1970 e 1980, a partir do fim do socialismo real. Para esta historiadora, “é possível afirmar que se num período inicial, entre as décadas de 1950 e 1970, o revisionismo histórico se desenvolve na esfera intelectual e incide especialmente sobre releituras da II Guerra Mundial, a partir dos anos 1990, com o colapso do socialismo real, esta tendência generaliza-se para variados outros casos nacionais de passados autoritários e revolucionários. Ao mesmo tempo, verifica-se nas sociedades contemporâneas um crescente processo de mediatização da história, uso público e político do passado recente no espaço público das sociedades. Neste contexto, as tendências de revisionismo histórico tornam-se um fenómeno social, não mais restritas ao âmbito da historiografia, já que passam a ter expressão significativa na esfera da memória pública das sociedades.” (Soutelo, 2015)

Assim, para Soutelo, “o revisionismo histórico pode ser sucintamente definido como tendências interpretativas que, ao rejeitar a tradição revolucionária, promovem, por um lado, a recuperação, desculpabilização e branqueamento de experiências de autoritarismos do passado recente e, por outro lado, depreciam e deslegitimam a atuação de movimentos sociais, organizações e processos revolucionários. (…) Em geral, são desconsiderados processos, especificidades e contextos históricos de modo a confirmar certos posicionamentos político-ideológicos. Portanto, do ponto de vista histórico, é possível dizer que interpretações revisionistas procedem a negligências metodológicas com o fim de manipular a história.” (Soutelo, 2015)

Através da análise destas várias teorias, podemos então inferir que, em traços gerais, o revisionismo histórico é um processo através do qual se faz uma revisão e releitura da história através da introdução de novas perspetivas anteriormente invisibilizadas, sendo este processo geralmente utilizado e instrumentalizado por forma a servir determinadas agendas políticas. Assim, e citando Rollemberg e Martins Cordeiro, “um revisionista seria aquele que desafia e rejeita uma ortodoxia dominante, no campo político ou historiográfico. Mas, o que, a princípio, poderia ser profícuo – afinal, desafiar, duvidar, contestar, desconfiar, verificar não são atributos positivos de um bom pesquisador? Não são componentes indispensáveis à curiosidade intelectual? – passou a ser utilizado para designar pesquisadores que colocavam em questão uma verdade de tal forma estabelecida que, nesse processo, se aproximariam da relativização (e mesmo da negação) da história”. (Rollemberg e Martins Cordeiro, 2021)

Como podemos constatar, a polissemia e a multilateralidade que este conceito adquire entre os seus próprios pesquisadores faz com que este termo seja muitas vezes associado ao negacionismo histórico. Se considerarmos o termo “revisionismo histórico” como o processo segundo os qual se revisitam os factos e acontecimentos históricos, ainda que essa releitura do passado não negue factos anteriormente comprovados, podemos compreender a diferença entre revisionismo e negacionismo, dado que num deles se negam factos históricos e no outro se faz uma análise crítica dos mesmos, sem a sua negação à priori. Em suma, nem todo o revisionismo histórico é negacionismo, mas todo o negacionismo é um exercício extremo de revisionismo histórico.

 

___________

  • Cardina, Miguel. (2016). “Memórias amnésicas? Nação, discurso político e representações do passado colonial”. Configurações (pp. 31-42) Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais – Polo Da Universidade Do Minho (CICS -NOVA/UMINHO) https://doi.org/10.4000/configuracoes.3281
  • Rollemberg, Denise, e Janaina Martins Cordeiro. (2021). “Revisionismo E Negacionismo: Controvérsias”. História, histórias 9 (17). https://doi.org/10.26512/rhh.v9i17.36429.
  • Soutelo, Luciana. (2015). “O revisionismo histórico em Portugal: Origens e efeitos na memória da Revolução e do Estado Novo”. Resistência e/y Memória: Perspectivas Ibero-Americanas (pp. 48-57). Instituto de História Contemporânea. https://run.unl.pt/bitstream/10362/16123/1/Resiste%CC%82ncia%20e%20Memo%CC%81ria.%20Perspectivas%20Ibero-americanas.pdf
  • Soutelo, Luciana. (2014). “A memória pública sobre a Revolução e a ditadura em Portugal: da valorização do antifascismo ao desenvolvimento do revisionismo histórico”. A revolução de 1974-75: repercussão na imprensa internacional e memória(s) (pp 114-127) Instituto de História Contemporânea- https://run.unl.pt/bitstream/10362/15082/1/Vers%C3%A3o%20final%20Arevolu%C3%A7%C3%A3o1974-1975%20repercuss%C3%A3o%20na%20imprensa%20internacional%20e%20mem%C3%B3ria(s).pdf#page=114
  • Soutelo, Luciana. (2015). “A memória pública do passado recente nas sociedades ibéricas: revisionismo histórico e combates pela memória em finais do século XX”. Tese de Doutoramento em História, Faculdade de Letras da Universidade do Porto https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/83844/2/134542.pdf
  • Tolêdo, Hérculis. (2017). “Resenha: Revisionismo histórico e a deslegitimação da tradição revolucionária e anticolonial” O Social em Questão, n. 39. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=566&sid=54

Diana Cruz

Mestranda em Migrações, Inter-etnicidades e Transnacionalismo pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
Licenciada em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Pós-Graduada em Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *