
As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.
Longos os tempos do “momento romano” dos EUA (Krauthammer, 1990) no pós-Guerra Fria, assistimos progressivamente a um mundo multipolar. Neste cenário, a China apresenta-se como uma potência de aspiração à plena ordenação regional, ensaiando um revisionismo sistémico, como demonstra a criação de instituições internacionais paralelas – como a Organização de Cooperação de Xangai ou o Banco Asiático de Investimento de Infraestruturas (Leonard, 2016) – e o seu projeto megalómano de projeção económica da Ásia à Europa: “One Belt, One Road” (Belt and Road Initiative, 2013). Por todo o globo, proliferam as integrações regionais – caso do Mercosul, ASEAN, BRICS, OCX ou da União Africana (Leonard, 2016). Mais ainda, não será de descurar a influência da Covid-19 na (re)distribuição de poder no Sistema Internacional.
Perante este (novo?) status quo, a União Europeia confronta-se com uma clara realidade securitária: a preponderância de “não depender do poder militar de terceiros para garantir a sua defesa” – como reconhecido pelo então (2016) Presidente da Comissão Europeia Jean Claude-Juncker (Matlary, 2018). A ameaça do ex-Presidente dos EUA da retirada do país da NATO (Atlantic Council, 2018) permitiu à então Alta Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, Federica Mogherini, concretizar a conclusão evidente da premissa anterior: “a Europa não pode tomar como garantida a proteção pelos Estados Unidos” (Matlary, 2018). Nesta linha de raciocínio, a Estratégia Global para a Política Externa e de Segurança da União Europeia de 2016 preconizava uma União enquanto um “credible security-provider dentro e além das fronteiras da UE” (EEAS, 2016), conferindo uma base política e estratégica para o desenvolvimento de várias políticas comunitárias ao nível da defesa: a assinatura da Pesco (Permanent Structured Cooperation), o Card (Co-ordinated Annual Review of Defence) e o Edf (European Defense Fund) (ibid.).
Simplificando de forma abusiva, formalizava-se a necessidade da UE reforçar os seus fatores abstratos de poder, i.e. hard-power. Porém, a questão fundamental enuncia-se de forma elementar: como o fazer de forma lúcida? – ou seja, como engendrar uma estratégia de afirmação europeia no domínio militar com o reconhecimento dos constrangimentos, internos e externos, à busca de mais hard-power; bem como assente na consciencialização de que tal busca por maiores capacidades militares não deve, por outro lado, pôr em xeque todos os seus pontos fortes – que são em igual forma vitais para a sua relevância internacional.
No domínio dos constrangimentos internos, nunca deixando de reconhecer a preponderância da capacidade militar autónoma tão-só para garantir a sua segurança neste Sistema Internacional em alteração, a UE tem de ter plena consciência do que não é: um Estado soberano. Não obstante o binómio intergovernamental-supranacional – este último considerando a posse de competências exclusivas pela UE –, no tocante a questões securitárias e de defesa, a União Europeia tem de reconhecer que é composta, em primeira instância, por 27 Estados soberanos, situados do Norte ao Sul da Europa, do Oeste ao Leste Europeu, no Mediterrâneo ou próximos do Mar Ártico, que contam com fronteiras terrestres e/ou marítimas, com vizinhos diferentes, com diferentes relações económicas e políticas com Estados terceiros; e, portanto, com díspares realidades geopolíticas, geoestratégicas, geoeconómicas e, logo, securitárias. Questione-se que tipo de ação estratégica pode tomar a União Europeia per se perante a Rússia num cenário em que, simultaneamente, a economia russa representa, por um lado, 17% das exportações da Estónia e, por outro, nem sequer consta nos parceiros económicos mais relevantes de Portugal (Matlary, 2018). Uma possível resposta poderia vir da proposta da UE em impor sanções à Rússia pelo seu apoio à Síria aquando da tomada de Aleppo, em 2016: se Alemanha, França e Reino Unido consentiram, já as preocupações securitárias – políticas e económicas – de Itália, Grécia, Espanha ou Finlândia fizeram estes países estar contra a proposta (ibid.).
O que é aqui relevante é que uma eventual utilização em larga escala de hard-power pela União Europeia poderia, muito provavelmente, não considerar em simultâneo – e até pode fazê-lo em contraditório – as preocupações securitárias de todos os Estados-membro. A discórdia entre Reino Unido, França e Alemanha sobre a intervenção no Iraque em 2003 estabelece uma indicação nesse sentido (The Economist, 2003). No limite, além de provável fonte de discórdia, tal realidade poderia gerar desunião e, sobretudo, dúvida pelos Estados-membro no compromisso global com a União Europeia.
Discorrendo sobre os constrangimentos no plano externo, importa também atentar para a necessidade de contar aqui com um referencial coerente para o aumento do hard-power. Desde logo, essa ambição deve compreender perfeitamente a distribuição de poderes no Sistema Internacional – onde os EUA, principal aliado securitário dos Estados europeus e custeador da defesa europeia, não só é ainda hegemónico como, a partir do passado dia 20 de janeiro, afirma comprometer-se a uma renovada agenda de cooperação transatlântica. Posto isto, o aumento das capacidades militares da UE não deverá ser à revelia, mas em complementaridade com os aliados Atlânticos, continuando a privilegiar a via da NATO e o seu baluarte: os EUA. Em segunda instância, é imperioso que a União Europeia saiba integrar, harmoniosamente, a sua busca por hard-power com os trunfos exclusivos para a afirmação no Sistema Internacional – que, como referido, não são de somenos importância que as capacidades militares para a sua relevância internacional.
Concretizando a ideia, a busca por hard-power pela UE terá de estar integrada com o seu mercado único, a sua livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais, o seu Espaço Schengen, o seu sucesso enquanto modelo de segurança coletiva que tornou impensável em poucas décadas uma guerra num continente fustigado por duas Guerras Mundiais no século XX, a sua força nas organizações internacionais enquanto posição de bloco, a credibilidade e confiança por si gozadas enquanto parceiro económico e político; e, com enorme destaque, a sua principal e inigualável via de afirmação internacional: o poder normativo, ou seja – apoiando-nos em Manners (2002) e tendo em conta a obrigação exposta nos Artigos 3(5)º e 21º do Tratado da União Europeia acerca das relações internacionais e da ação externa da UE, respetivamente, da União fundar toda a sua atividade nos seus valores essenciais (expostos no Artigo 2º) – a capacidade de promoção e instauração dos seus valores e conceções fundamentais, enraizadas nos seus Tratados Fundadores, em todas as suas relações económicas, comerciais e políticas com todos os sujeitos da comunidade internacional, coagindo-os a adotar os valores e normas da UE como requisito estrutural para a existência de uma relação e, portanto, transformando-os.
É consensual o sucesso deste poder normativo em múltiplas dimensões. Tão só dentro da UE, a infeção (termo escolhido pela sensibilidade dos tempos recentes) dos sistemas constitucionais dos Estados-membro pelo acquis communautaire europeu foi sobejamente eficaz na promoção da democracia liberal, economia de mercado ou o respeito pelas minorias nos países do antigo bloco socialista pelo alargamento de 2004 (Leonard, 2016). Também, no plano externo, esta obrigação de adoção do acervo comunitário pela Política Europeia de Alargamento aos países candidatos tem um enorme impacto na expansão dos valores da união. Semelhante efeito desencadeiam os incentivos financeiros que recompensam a adoção das normas europeias pelo Instrumento Europeu de Vizinhança. Na mesma linha, o Mercado Único da UE tem coagido não apenas países, mas multinacionais a adotarem a legislação da União para garantir o acesso a 450 milhões de consumidores (Bradford, 2013). Não de somenos, a elevação de provisões referentes à proteção dos direitos humanos, desenvolvimento sustentável ou padrões laborais como cláusulas essenciais nos Acordos Comerciais da UE com os seus parceiros tem reforçado a condicionalidade que a União exige para haver relações comerciais.
O que se pretende extrair da anterior exposição é relembrar a necessidade de acautelar qualquer debate sobre as ambições de um Poder Militar Europeu para a preponderância – e limitação – da complementaridade vital entre as capacidades militares e os valores e normas nas quais a UE se funda e procura promover e institucionalizar em todas as suas interações. Por conseguinte, onde a utilização de um Poder Militar Europeu não se limite a um propósito momentâneo e como um meio isolado, mas dotado e integrado de e numa visão macro de resposta aos conflitos dentro da promoção das normas europeias.
Dentro da proposta de Ação Global da UE de 2016 de uma “Abordagem Integrada aos Conflitos” e da caracterização, por Federica Mogherini, da “Política Externa da UE não como uma performance a solo, mas como uma orquestra de vários meios para o mesmo fim” (EEAS, 2016), é reforçada a necessidade de pensar que um acrescido hard-power da UE terá sempre de acompanhar o poder normativo – e fortalecer a sua eficácia –, considerando não apenas o momento bélico, mas trabalhar nas causas da crise e na estabilização pós-conflito.
Por fim, recuperando a consideração da UE como um parceiro credível e confiável, será vital também debruçarmo-nos sobre a importância da legitimidade do recurso ao poder militar pela UE não apenas em termos de propósito de intervenção, mas também no seu enquadramento político e legal. Um Poder Militar Europeu, sob pena de minar toda a consideração da UE, não pode ser tido como unilateral e movido por interesses particulares. Antes, terá maior eficácia se for enquadrado no âmbito do multilateralismo e focado na resposta às necessidades do conflito, em articulação com parceiros nacionais, regionais e mundiais que primem pelos mesmos valores; com claro destaque para a NATO e a ONU – e concretamente os mandatos do Conselho de Segurança –, cumprindo o pressuposto da co-responsabilidade defendido na Ação Global da UE de 2016, demonstrando uma UE disponível e capaz de intervir para garantir na cena internacional.
Afonso Guerra Carvalho
Mestrando em Direito Internacional e Europeu
Nova School of Law
Bibliografia
Atlantic Council. (2018). Trump Confirms He Threatened to Withdraw from NATO. CSPAN. (2018). https://www.atlanticcouncil.org/blogs/natosource/trumpconfirms-he-threatened-to-withdraw-from-nato/.
Belt and Road Initiave. (2013). Disponível em https://www.beltroad-initiative.com/.
Bradford, A. (2016). The EU as a regulatory power. https://www.jstor.org/stable/resrep21667.20?seq=1#metadata_info_tab_contents.
EEAS (European Union External Action Service). (2016). Shared Vision, Common Action: A Stronger Europe: A Global Strategy for the European Union’s Foreign And Security Policy. https://eeas.europa.eu/archives/docs/top_stories/pdf/eugs_review_web.pdf.
Krauthammer, C. (1990). The Unipolar Moment. Foreign Affairs. https://www.foreignaffairs.com/articles/1990-01-01/unipolar-moment.
Leonard, M. (2016). Connectivity Wars: Why Migration, Finance and Trade are the Geo-economic Battlegrounds of the Future. European Council on Foreign Relations (ECFR), ISBN: 978-1- 910118-55-9. https://ecfr.eu/wpcontent/uploads/Connectivity_Wars.pdf.
Manners, I. (2002). Normative Power Europe: A Contradiction in Terms?. Journal of Common Market Studies, 40(2), 235-258. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1468-5965.00353.
Matlary, J. H. (2018). Hard Power in Hard Times. Palgrave Macmillan, Cham, http://link-springer-com443.webvpn.fjmu.edu.cn/chapter/10.1007%2F978-3-319-76514-3_6.
The Economist, (2003). An alliance in turmoil, Disponível em https://www.economist.com/unknown/2003/02/10/an-alliance-in-turmoil.
Tratado da União Europeia. (1992). Jornal Oficial da União Europeia C 202/13https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:12012E/TXT&from=EN.