As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.
Todos os anos, no dia 27 de Janeiro, deve recordar-se, com angústia, mas também alívio, o “aniversário” da libertação do campo de extermínio em Auschwitz. Todavia, devemos recordar, também, que os campos de concentração Nazi não foram um momento único na história, nem foram um momento tão excecional como se gostaria de pensar.
Campos como Auschwitz, Dachau, Treblinka ou Sobibor causaram a morte de seis milhões de Judeus e outros tantos milhares pertencentes a diferentes minorias: pessoas com deficiência, homossexuais, pessoas pertencentes à etnia romani, prisioneiros, entre outros. Em suma, a Segunda Guerra Mundial deixou para trás um rasto de destruição e uma das piores atrocidades cometidas pelo Homem – o genocídio industrializado. O pior, na minha opinião, prende-se pelo facto desta mancha negra na história da humanidade não ser um momento excecional, nem se tratar apenas de um povo subjugado a um líder carismático, a saber, Adolf Hitler, nem de um momento singular, visto que campos de concentração persistem até hoje, em diversas partes do mundo (Guardian, 2020).
Nas palavras de Scheper-Hughes & Bourgois (2004), os atos mais violentos são os atos socialmente permitidos. Para autores como eles, ou como para Zigmund Bauman, ou ainda Hannah Arendt, o Holocausto aparenta ser um triunfo louco da racionalidade e da modernidade.
Primeiramente, a Modernidade foi um período pautado pelo triunfo da Natureza sobre a Religião: o Homem cientista passou para o centro. Por conseguinte, a Natureza era algo passível de ser moldado para acomodar as ideias ou necessidades do Homem. Deste modo, a ideia da “sociedade ideal” passava pela construção da mesma: aquilo ou aqueles que eram moldáveis à Ordem desejada eram separados daqueles que eram considerados irremediáveis. Este segundo grupo constituía uma ameaça ao projeto: teria de ser eliminada. A este processo, Bauman (1989) deu o nome de social engineering.
Torna-se importante referir, ainda, o conceito apresentado por Foucault, denominado biopower: processo onde o discurso científico governamental tem por objetivo a gestão de “stock” biológico. Por outras palavras, algo semelhante ao conceito de necropolitics, apresentado por Mbembe (2003), que se refere a um estádio onde o governo decide quem merece vive e quem deve morrer, dominando todos os aspetos e momentos da vida dos cidadãos. Os campos de concentração Nazi são um exemplo perfeito para ilustrar este conceito, bastando atentar ao termo que Primo Levi (2018) utiliza para descrever a vida no campo, a zona cinzenta: “é uma zona cinzenta, de contornos mal definidos (…). Possui uma estrutura incrivelmente complicada e aloja dentro de si o suficiente para confundir a nossa necessidade para julgar”.
Autores como Bauman argumentam, ainda, que o racismo passou, assim, a ser usado como um instrumento político, alimentando a lógica de que aquilo que não encaixa no nosso ideal, terá de ser eliminado. No caso específico do Holocausto, já antes da Modernização havia uma onda de antissemitismo espalhada pela Europa, que o autor define como heteronímia (sentimento negativo perante o outro, mas sem animosidade). Com a Modernidade, os Judeus passaram a encorpar a culpa de tudo o que havia de negativo: deixaram de ser pessoas para se tornarem uma “identidade alien” (Bauman, 1989).
Ora, da teoria à prática ainda faltaria um longo caminho, se não fosse a burocracia de que a maioria dos países dispunha na altura. A burocratização foi o instrumento que permitiu a concretização desta sociedade manipulada, uma vez que cada pessoa era apenas mais uma roda dentada na engrenagem: as consequências das ações de cada um estavam tão distantes, como em Auschwitz, por exemplo, que a relação de causa-efeito entre a tarefa a desempenhar e a morte de indefesos nunca foi estabelecida. Nas palavras de Primo Levi (2018), a vida no campo era a derradeira burocratização do genocídio. A exterminação de Judeus era o produto resultante das fábricas da morte.
Segundo Scheper-Hughes & Burgois (2004), a violência é sempre mediada pela dicotomia legítimo/ilegítimo. As minorias perseguidas pelos Nazis foram declaradas ilegítimas, impuras, no fundo, não dignas de pertencer à Sociedade, o que se traduz no facto da sua eliminação ser considerada um ato de violência legítima. Deste modo, espero ter conseguido passar o argumento de que o Holocausto foi possível pela conjunção de três fatores: o racismo, a predisposição tecnológica (derivada da Modernidade) e a habilidade de pôr a teoria em prática (através da burocracia, propaganda, discurso). Em suma, estas três condições estavam reunidas na Alemanha dos anos 30.
Por sua vez, esta análise deverá dizer-nos que estas condições podem reunir-se em qualquer parte do mundo, a qualquer momento. Com isto, apenas quero frisar que não devemos dispensar o Holocausto como um acontecimento único, visto que as condições necessárias para um genocídio são tudo menos excecionais. Por último, não devemos nunca esquecer os horrores cometidos durante este período, fazendo tudo ao nosso alcance para que não se repita, sob qualquer pretexto ou em qualquer parte do mundo.
Sara Amorim
Mestranda em Conflict & Development Studies
Ghent University
Referências
https://www.theguardian.com/world/2020/apr/02/why-concentration-camps-are-still-with-us
Bauman, Z. (1989). Holocaust and Modernity (p.61-82), Cambridge UK: Polity Press
Mbembe, A. (2003). Necropolitics. Durham: Duke University Press
Scheper-Hughes, N. & Bourgois, P. (2004). Violence in war and peace: An anthology (p. 1–31). Malden, MA: Blackwell.
Levi, P. (2018). Os que Sucumbem e os que se Salvam. (2nd ed.) Alfragide: Dom Quixote