A teoria queer nas Relações Internacionais

Queer, na sua tradução literal, significa “estranho” ou “anormal” e, embora tenha sido utilizado primeiro com uma conotação pejorativa, para criticar aqueles que fogem ao entendimento normativo da sociedade, foi apropriado pelos mesmos enquanto celebração da diferença e crítica à normatividade (Eng et al., 2005; Richter-Montpetit, 2018).

A teoria queer, além de uma área recente – surgiu nos anos 70 e solidificou-se como área de estudo nos anos 90 – partilha muito da herança das teorias feminista, lésbica e depois LGBT, mas também se distancia destas no seu entendimento mais holístico da normatividade, ao analisar não só questões de género e orientação sexual como também étnicas, nacionais, religiosas e de classe (Eng et al., 2005; Richter-Montpetit, 2018).

O princípio basilar da teoria queer passa pela visão do género e da sexualidade enquanto conceitos socialmente construídos através do discurso, da política, da cultura e da própria socialização (Richter-Montpetit, 2018). Mais que isso, questiona as próprias fundações culturais, sociais e políticas que normalizam determinadas dinâmicas de poder – interligadas com o género e a sexualidade –, alicerçadas ao entendimento de uma dinâmica de superioridade conceptual. Partem, portanto, do princípio de que a realidade e a identidade são fundadas por binómios em que o segundo conceito se subjuga ao primeiro: o nós versus os outros, o normal versus o perverso, o heterossexual versus o homossexual, o masculino versus o feminino, entre outros (Richter-Montpetit & Weber, 2017). Estes binómios definem a cultura, a sociedade, a política e até a forma como o conhecimento é construído e produzido (Wilcox, 2014). 

Ao estudar as dinâmicas de poder e os comportamentos da sociedade civil, a teoria queer tem um elevado potencial de interdisciplinaridade com as Relações Internacionais (RI), por criticar grande parte dos princípios sociais pré-estabelecidos que definem a sociedade à imagem do ser hegemónico – o “normal”, patriarcal, cisgénero, heterossexual e branco –, enquanto que o subalterno – o queer, o “perverso” – está subjugado à condição de marginal, agindo, no entanto, enquanto ator no âmbito da infrapolítica e da prática subversiva da política (Eng et al., 2005; Richter-Montpetit & Weber, 2017).

Aplicando esta visão aos conceitos já utilizados pelas RI, a teoria queer assinala novas dicotomias como o público versus o privado, o doméstico versus o estrangeiro, a disciplina versus o terrorismo ou o conhecimento versus a ignorância. Por consequência, assume que estas dicotomias são, a determinado nível, influenciadas pelas dinâmicas de sexualidade e género, que não moldam apenas os entendimentos sociais, como são também responsáveis pelas dinâmicas políticas, normas sociais e até internacionais.  Esta nova visão da organização social e normativa torna a teoria queer numa lente crucial para analisar a realidade, independentemente do objeto – pessoas, Estados, eventos ou organizações – ou área de estudo – estudos para a paz, migrações, diplomacia, geopolítica, colonialismo, globalização, economia, entre outros. (Richter-Montpetit, 2018). 

A teoria apresenta uma visão crítica sobre a organização social e as instituições normativas baseadas no entendimento de Foucault de que “power is tolerable only on condition that it masks a substantial part of itself. Its success is proportional to its ability to hide its own mechanisms” (Foucault, 1978).

Neste sentido, a teoria queer contribui, de uma forma geral, para o estudo das RI ao analisar vários conceitos-chave como soberania, segurança e hegemonia, tanto global como regional (Richter-Montpetit, 2018). Por exemplo, Weber diz-nos que as ordens internacionais podem ser entendidas numa perspetiva queer, enquanto normais ou perversas. Assim, as formações e os entendimentos de poder são contestados ou validados através da sua relação com o queer, criando as “queer logics of statecraft”, ou seja, a forma como os atores marginais contestam a governança e o poder – tanto nacional como internacional – alterando o status quo do que era considerado uma realidade imutável, ou como o Estado consegue utilizar o género e a sexualidade para alimentar uma visão dicotómica da realidade (Richter-Montpetit & Weber, 2017). 

As RI, segundo a teoria queer, foram desenvolvidas de acordo com normas e lógicas culturais cis-sexistas – a visão do género como binário e naturalmente masculino ou feminino, dando primazia do ser masculino –, heteronormativas – a expectativa de que todos os indivíduos são e se comportam de acordo com os padrões e ações heterossexuais, assumindo este conjunto de comportamentos como superiores a todos os outros –, e homonormativas – a homossexualidade, isto é, maioritariamente gays mas extensível a lésbicas, deve ser a norma institucionalizada e social. Estas conceções excluem as restantes identidades de género, orientações sexuais e todos aqueles que fujam à regra cultural de pertença que, no limite, levam ao entendimento de que “‘queer’ is inherently antinormative” (Richter-Montpetit & Weber, 2017).

Deste modo, é possível questionar entendimentos vistos como imutáveis e, ao colocar as dinâmicas de poder perante uma lente crítica não heterossexual, não homonomalista – isto é homossexual enquanto norma – e não cis-sexista, é possível desconstruir a forma como o Estado-Nação e a sua soberania são construídos, como o capitalismo é entendido, ou até como o terrorismo é percecionado (Eng et al., 2005).

Por este motivo, o Estado Ocidental é visto como heterossexual, cisgénero e masculino (Lind, 2014), sendo esta paternalização e heterossexualização do mesmo – acrescendo a noção de branco, proveniente do legado cristão – e das dinâmicas internacionais, fruto de uma herança cultural e identitária normativa, organizadas em torno de dinâmicas de marginalização de todos aqueles que fogem à “norma” – minorias étnicas, pessoas não cisgénero, pessoas não-heterossexuais, entre outros. 

Segundo a teoria queer, o Estado não deve ser visto como heterossexual ou homossexual, e embora as políticas de inclusão de direitos LGBT tenham aumentado, estas podem ser entendidas como um mecanismo de hegemonia dos Estados. Neste contexto, a concessão de direitos LGBT representa um meio para alcançar o poder, i.e. os Estados ao aceitarem pessoas LGBT, não só apaziguam movimentos sociais de resistência interna, como também se apresentam como liberais, democratas e inclusivos no panorama internacional (Lind, 2014). Mais, utilizam o género e a sexualidade enquanto armas políticas para potenciar novos seres queer – marginais –, presentes na visão de um novo inimigo comum – os migrantes, os terroristas, os estrangeiros –, mantendo as dicotomias sociais e criando novas ordens internacionais de poder (Lind, 2014; Richter-Montpetit, 2018; Wilcox, 2014).

Em suma, a teoria queer, desenvolvida a partir de autores como Michel Foucault (1976), Judith Butler (1990) e Eve Kosofsky Sedgwick (1990), procura provar que o que tomamos como real, natural e imutável é fruto de uma normalização e configuração estruturada em prol de dinâmicas de poder que podem e devem ser contestadas e continuamente reavaliadas.

Mónica Correia
Mestranda em Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo

NOVA-FCSH

Leituras Posteriores

Ahmed, S. (2006). Queer Phenomenology: Orientations, Objects, Others. Duke University Press.

 

Hall, D. E., & Jagose, A. (Eds.). (2012). The Routledge Queer Studies Reader. Routledge.

 

Jagose, A. (1996). Queer Theory: An Introduction. NYU Press.

 

Richter-Montpetit, M., & Weber, C. (2017). Queer international relations. Em Oxford research encyclopedia of politics (p. 40). Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190228637.013.265

 

Weber, C. (2016). Queer International Relations: Sovereignty, Sexuality and the Will to Knowledge. Oxford University Press.

Bibliografia

Eng, D. L., Halberstam, J., & Muñoz, J. E. (2005). Introduction. Social Text, 23(3-4 (84-85)), 1–17. https://doi.org/10.1215/01642472-23-3-4_84-85-1

 

Foucault, M. (1978). The history of sexuality: An introduction, volume I (Vol. 164). Pantheon Books.

 

Lind, A. (2014). “Out” in International Relations: Why Queer Visibility Matters. International Studies Review, 16(4), 601–604. https://doi.org/10.1111/misr.12184

 

Richter-Montpetit, M. (2018). Everything You Always Wanted to Know about Sex (in IR) But were Afraid to Ask: The ‘Queer Turn’ in International Relations. Millennium, 46(2), 220–240. https://doi.org/10.1177/0305829817733131

 

Richter-Montpetit, M., & Weber, C. (2017). Queer international relations. Em Oxford research encyclopedia of politics (p. 40). Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190228637.013.265

 

Wilcox, L. (2014). Queer Theory and the “Proper Objects” of International Relations. International Studies Review, 16(4), 612–615. https://doi.org/10.1111/misr.12187