Os direitos humanos na sociedade internacional

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Human rights are principled ideas about the treatment to which every individual is entitled by virtue of being human(Schmitz & Sikkink, 2013). Estas ideias têm ganho aceitação praticamente universal sob a forma de direito internacional e de normas sociais, tendo um efeito considerável na forma como os Estados tratam os seus cidadãos (Schmitz & Sikkink, 2013).  O objetivo deste artigo é explicar a emergência dos direitos humanos e a influência que têm na sociedade internacional. 

É proposto que olhemos para os direitos humanos como uma instituição. Eles não são mais do que ideias socialmente construídas, cuja influência deriva do facto de serem partilhadas por uma larga comunidade que se revê no imperativo moral da sua concretização. Uma instituição pode ser entendida como um conjunto relativamente estável de práticas, regras e normas que postulam qual é o comportamento adequado para dados atores num determinado contexto (March & Olsen, 1998). As instituições enfrentam os atores sociais, no nosso caso os Estados, como realidades exteriores, autoevidentes e coercivas que orientam a sua conduta numa determinada direção, ao invés de outras teoricamente possíveis (Berger & Luckmann, 2010)

No caso desta instituição, a sua indicação fundamental é que os Estados devem respeitar os direitos humanos dos seus cidadãos (Schmitz & Sikkink, 2013). Como disse, as instituições são compostas por elementos ideacionais, como as normas, com indicações mais precisas de comportamento adequado – podemos ver cada um dos direitos humanos como uma norma. É importante ter em consideração que as instituições são socialmente construídas e sujeitas à prática dos agentes, atravessando períodos de criação, transformação e destruição (Buzan, 2004). As normas que as compõem tornam-se objetivas e coercivas, mas serão também contestadas, transformadas ou eliminadas, pelo que a instituição como um todo terá diferentes normas e diferentes níveis de coercividade ao longo do tempo. Tracemos, então, a história desta instituição.

O primeiro momento de institucionalização dos direitos humanos foi a criação de direito humanitário em situações de guerra, identificado com as quatro Convenções de Genebra criadas entre 1864 e 1949 (existem ainda três protocolos adicionais criados posteriormente). Estas Convenções preveem a proteção de soldados feridos e incapacitados, assim como de pessoal médico neutro para os assistir (I e II Convenções), a garantia de tratamento digno a prisioneiros de guerra (III convenção) e a proteção de civis em contexto bélico (IV Convenção).  Finnemore (1996) explica que a criação destas normas se deveu à ação de um indivíduo, Henry Dunant, e da ONG que fundou – o Comité Internacional da Cruz Vermelha –, que foi capaz de convencer alguns líderes mundiais a reunirem-se em duas conferências em Genebra (1863 e 1864) à volta destas preocupações, resultando na vinculação dos seus países à I Convenção de Genebra. O resto é história e, à medida que ela decorreu e estas normas se expandiram, 196 Estados assinaram e ratificaram as 4 Convenções. 

Este primeiro desenvolvimento de normas de direitos humanos foi ainda algo incipiente e circunscrito para assinalar o surgimento duma instituição, mas, sem dúvida, levantou esta preocupação e disciplinou a forma como os Estados fazem a guerra. Outros momentos existiram como as campanhas para a abolição da escravatura ou para o sufrágio feminino, mas também eles foram demasiado circunscritos (Schmitz & Sikkink, 2013).

Foi a seguir à II Guerra Mundial que os direitos humanos iniciaram um processo de extensiva legalização e institucionalização, culminando hoje num largo corpo de direito internacional humanitário, tratados e normas. O mote foi dado com a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, que compreendia uma lista de direitos humanos a respeitar divididos em duas categorias: (i) os direitos civis e políticos como a igualdade perante a lei, a proteção contra a detenção arbitrária e a liberdade de expressão, religião e associação; (ii) os direitos económicos, sociais e culturais como o direito à alimentação, habitação, educação e saúde (Donnelly, 2014). Nesta sequência, foram adotados nos anos seguintes aqueles que são os sete principais tratados legalmente vinculativos sobre direitos humanos: um sobre direitos civis e políticos (1966), um sobre direitos sociais, económicos e culturais (1966), um sobre discriminação racial (1965), um sobre discriminação das mulheres (1979), um sobre tortura (1984), um sobre direitos das crianças (1989) e um sobre pessoas com deficiência (2006). Estes Tratados conquistaram aceitação quase universal, tendo sido assinados ou ratificados, em média e a dezembro de 2016, por 176 Estados (Donnelly & Whelan, 2017).

Chegados à década de 90, era inquestionável a existência de um regime internacional de direitos humanos robusto, no sentido de possuir um vasto conjunto de normas e tratados. Por outras palavras, estava formada a instituição dos direitos humanos na sociedade internacional. No entanto, durante as duas décadas seguintes teve lugar outro desenvolvimento normativo: a intervenção humanitária. Discutia-se a possibilidade de a comunidade internacional intervir, se necessário militarmente, para travar violações graves de direitos humanos. A intervenção humanitária institucionalizou-se na viragem do século com a norma do Responsibility to Protect (R2P). Esta proposta foi aprovada por unanimidade na ONU, resultando de um compromisso entre os mais entusiastas, incluindo Estados europeus, norte-americanos e africanos, e os mais céticos, sobretudo Estados pós-coloniais e não ocidentais. Desta forma, não surpreende que o R2P tenha um cunho verdadeiramente estatista ou soberanista: (i) a responsabilidade de proteger é dos Estados; (ii) a intervenção da comunidade internacional deve ser primariamente no campo da assistência, prevenção e meios pacíficos; (iii) só no caso de elas falharem e de haver autorização explícita do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) é que é possível intervir militarmente (Wheeler & Bellamy, 2014).

Este desenvolvimento reflete uma mudança profunda na sociedade internacional –os direitos humanos tornaram-se no standard a partir do qual se avaliam as instituições internas de um Estado e a condição para o exercício da sua soberania (Zhang & Buzan, 2019). Por conseguinte, a fonte de legitimidade para a soberania estatal passa a ser o respeito pelos direitos humanos, especialmente civis e políticos, e a intervenção externa para travar graves violações dos mesmos torna-se legítima (Barkin, 1998).

Até agora, observamos como se formou a instituição dos direitos humanos e quais são os elementos que a compõem; falta agora analisar o seu impacto.  

Não há dúvida do efeito transformativo desta instituição na sociedade internacional. Ao longo dos anos, temos observado o seu clássico efeito causal e constitutivo (Buzan, 2004). Quanto ao primeiro, em muitos Estados, especialmente na América Latina e Europa Central e do Leste, mas também em África e na Ásia (embora menos), testemunhamos a transição de governos repressivos para governos que respeitam, melhor ou pior, os direitos humanos dos seus cidadãos (Donnelly & Whelan, 2017). Quanto ao segundo, esta instituição constituiu significativamente as identidades e interesses de muitos Estados, sobretudo ocidentais e partir da década de 80, no sentido de incorporarem preocupações humanitárias nas suas políticas externas (Donnelly & Whelan, 2017). Com certeza que isto causa espanto a muitos realistas, que não conseguem compreender como é que os Estados aceitaram estas restrições à sua soberania. A verdade é que as ideias coletivamente partilhadas, como instituições, são altamente influentes no comportamento dos atores da sociedade internacional. O facto da legitimidade da instituição dos direitos humanos ser universalmente aceite coage os Estados incumpridores a respeitá-la e empodera a pressão feita por outros atores nesse sentido, sejam eles Estados, ativistas individuais, organizações internacionais ou ONGs domésticas e internacionais (Donnelly & Whelan, 2017).

No entanto, a existência de uma instituição, apesar da sua coercividade, não garante conformidade automática de todos os atores, existindo ainda bastantes Estados que violam direitos humanos. Esta instituição enfrenta um conjunto de problemas que prejudicam a efetivação dos direitos humanos na sociedade internacional.

Em primeiro lugar, existe ainda uma disputa Norte-Sul sobre o significado de direitos humanos: os Estados ocidentais privilegiam direitos civis e políticos, enquanto os Estados do Sul Global privilegiam direitos económicos e sociais. Uma vez que as ideias são apoiadas por poder, na prática existe uma clara hierarquia na instituição no sentido da priorização do primeiro conjunto de direitos (Barkin, 1998). Assim, a transformação ocorrida na década de 90 foi criada pela agência sobretudo de democracias liberais ocidentais e é muito contestada fora do Ocidente, sendo vista como imperialismo cultural ou a tentativa de impor os valores ocidentais no resto do mundo (Barkin, 1998)

Os países do Sul têm defendido a priorização de direitos sociais e económicos e noções de relativismo cultural, isto é, a ideia de que os direitos civis e políticos são fruto de um background histórico, cultural e político particular, logo não universalizável (Kim, 2017). Além disto, estes países, muitos deles pós-coloniais, são geralmente muito ciosos da sua soberania e resistem à possibilidade de interferência por motivos humanitárias, especialmente militar. Isto tem-se traduzido no seu bloqueio constante no CSNU pela Rússia e pela China após a intervenção na Líbia (2011), que foi além do seu mandato para efetuar regime change, confirmando os receios destes países em relação à soberania. A ausência de consenso universal sobre o significado e a aplicação dos direitos humanos continuará a comprometer a eficácia destas normas.

Em segundo lugar, os mecanismos de monitorização e de garantia de cumprimento do direito internacional humanitário são ainda muito fracos, o que resulta muitas vezes no paradoxo de Estados ratificarem Tratados e continuarem a violar direitos humanos (Zhang & Buzan, 2019). Isto acontece porque foi estabelecido um sistema nacional de implementação de direitos humanos (Donnelly & Whelan, 2017). Apesar de as entidades supervisoras dos Tratados fazerem revisões periódicas ao cumprimento dos Estados, estas assentam em relatórios feitos pelos próprios, logo comprometidos à partida, e a entidade, após reunir com o Estado e lhe colocar perguntas, não tem autoridade para condenar publicamente o Estado nem para sancioná-lo (Donnelly, 2014)

Da mesma forma, a eficácia do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDHNU), principal órgão multilateral nesta matéria, é também é muito limitada. Os seus 47 Estados-membros são eleitos pela Assembleia Geral obedecendo a uma quota regional, que resulta, na prática, na eleição de muitos Estados que não respeitam direitos humanos (Donnelly & Whelan, 2017). Isto, evidentemente, traduz-se na exclusão sistemática da discussão sobre a situação humanitária em muitos países. A cada quatro anos, o CDHNU realiza a Universal Periodic Review a todos os membros da ONU, que também assenta em relatórios feitos pelos próprios Estados e que não assume uma postura condenatória nem tem o poder de sancionar – apenas produz recomendações não vinculativas (Donnelly & Whelan, 2017). Já o TPI tem, efetivamente, poderes de judicial enforcement, mas o seu mandato diz respeito apenas a casos de indivíduos (não Estados) que cometeram genocídio, crimes de guerra ou crimes contra a humanidade – toca ainda em poucos casos, mas crescentes (Kim, 2017).

A conclusão é que a implementação de facto das normas de direitos humanos depende sempre em última instância da vontade dos Estados. Ressalte-se, porém, que o objetivo dos mecanismos multilaterais não é coagir os Estados, mas sim desenvolver mecanismos de persuasão e encorajamento, por exemplo, através de relatórios que obrigam os Estados a refletir sobre as suas práticas (Donnelly, 2014). Por outro lado, os Estados incumpridores enfrentam sempre a pressão e o shaming internacional de vários agentes (Donnelly, 2014). Há também Estados e organizações internacionais que se encarregam de promover direitos humanos na sua política externa, quer através da persuasão com meios diplomáticos e económicos, quer sancionando incumpridores com embargos, sanções económicas e intervenções militares (Kim, 2017).

Numa nota conclusiva, não há dúvida que a instituição dos direitos humanos transformou profundamente a sociedade internacional, o que é mais uma prova do lugar frontal das ideias na política internacional. Será interessante observar como é que ela se confronta com os seus problemas, mas os seus níveis de legalização, legitimidade e institucionalização parecem antecipar um futuro promissor para os direitos humanos.

Diogo Machado
Aluno de Licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais

NOVA-FCSH

Referências

Barkin, J. S. (1998). The Evolution of the Constitution of Sovereignty and the Emergence of Human Rights Norms. Millennium, 27(2), 229–252. https://doi.org/10.1177/03058298980270020401

Berger, P., & Luckmann, T. (2010). A Construção Social da Realidade. Lisboa: Dinalivro.

Buzan, B. (Ed.). (2004). The primary institutions of international society. Em From International to World Society?: English School Theory and the Social Structure of Globalisation (pp. 161–204). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511616617.009

Donnelly, J. (2014). Human Rights. Em J. Baylis, S. Smith, & P. Owens (Eds.), The Globalization of World Politics: An introduction to international relations (6th Edition, pp. 463–478). Oxford, UK: Oxford University Press.

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Finnemore, M. (1996). National Interests in International Society. London: Cornell University Press.

Kim, H. J. (2017). Universal Human Rights. Em T. Dunne & C. Reus-Smit (Eds.), The Globalization of International Society (pp. 304–322). Oxford: Oxford University Press.

March, J. G., & Olsen, J. P. (1998). The Institutional Dynamics of International Political Orders. International Organization, 52(4), 943–969. https://doi.org/10.1162/002081898550699

Schmitz, H. P., & Sikkink, K. (2013). International Human Rights. Em W. Carlsnaes, T. Risse, & B. Simmons (Eds.), Handbook of International Relations (2nd Edition, pp. 827–852). London: SAGE Publications Ltd.

Wheeler, N. J., & Bellamy, A. J. (2014). Humanitarian intervention and world politics. Em J. Baylis, S. Smith, & P. Owens (Eds.), The globalization of world politics: An introduction to international relations (6th Edition, pp. 479-493). Oxford: Oxford University Press.

Zhang, Y., & Buzan, B. (2019). China and the Global Reach of Human Rights. China Quarterly, 241, 169–190. https://doi.org/10.1017/S0305741019000833