Responsibility to Protect (R2P)

As intervenções humanitárias (IH) continuam a ser um tópico muito controverso tanto na disciplina das Relações Internacionais, como na sua prática. O objetivo deste artigo é explicar como ela deu origem à regra do Responsibility to Protect (R2P), assim como o seu funcionamento.

Após o fim da Guerra Fria, não havia qualquer norma escrita de Direito Internacional que autorizasse IH, priorizando-se a soberania como princípio absoluto da sociedade internacional. No entanto, as sucessivas IH que tiveram lugar na década de 90, culminando no Kosovo, dão origem a uma discussão jurídica e normativa sobre a responsabilidade da comunidade internacional pela proteção dos direitos humanos (Wheeler, 2000). Esta discussão estava longe de ser consensual. Por um lado, alguns Estados, sobretudo Ocidentais, defendiam que a comunidade internacional não podia ficar indiferente perante violações graves de direitos humanos; já outros, sobretudo associados ao Movimento dos Não-Alinhados, alegavam que tal seria uma violação da obrigação à abstenção de uso unilateral da força, que só podia ser exercido em legítima defesa ou com autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) (Wheeler, 2000).

Todavia, parece-nos que, à medida que a década avançou, a comunidade internacional foi progressivamente institucionalizando a ideia de que era responsável pela proteção de direitos humanos, mesmo que isso implicasse a violação de soberania de outros Estados (Alkopher, 2016).

Já na década seguinte, e seguindo o mote de Kofi Annan, a International Comission on Intervention and State Sovereignty (ICISS) lança o relatório Responsability to Protect, em 2001. Este documento alegava que os Estados tinham a responsabilidade de proteger as populações de execuções em massa, sendo que, quando falhassem, esta responsabilidade seria transferida para a comunidade internacional, podendo recorrer ao uso da força se necessário para proteger as populações (Wheeler & Bellamy, 2014). Deixou, inclusivamente, em aberto a possibilidade a possibilidade de as IH serem legitimamente empreendidas sem a autorização do CSNU (Welsh, 2013). Embora ambígua e controversa em muitos aspetos, a proposta do R2P contribuiu para avançar o debate, apontando para caminhos concretos de aplicação da norma.

O debate normativo perdeu, no entanto, muito ímpeto com o 11 de setembro de 2001, momento em que a agenda internacional se voltou para o contraterrorismo, suspendendo a discussão sobre o R2P (Welsh, 2013). Contudo, graças a um grande esforço de norm entrepreneurs chave como Kofi Annan e Gareth Evans, proeminente membro da ICISS, o R2P é finalmente reintroduzido na agenda e a regra do R2P é aprovada por unanimidade em 2005 – institucionaliza-se finalmente uma norma relativa às IH (Welsh, 2013). Ela pode ser explicada através dos três pilares que a constituem (Bellamy & Wheeler, 2014):

·       Pilar 1: responsabilidade primária dos Estados de proteger as suas populações de genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade;

·       Pilar 2: obrigação da comunidade internacional de assistir os Estados nesta tarefa através da prevenção e construção de capacidades para o efeito;

·       Pilar 3: responsabilidade da comunidade internacional de agir de forma oportuna e decisiva para proteger as populações através de meios pacíficos (diplomáticos e humanitários). Quando o Estado falha e estes meios também, a comunidade internacional pode intervir militarmente mediante autorização do CSNU (seleção caso a caso e com apoio de organizações regionais).

Assim, o R2P constitui-se como uma interpretação mais estatista ou soberanista das IH. Desde logo, porque limita as violações de direitos humanos sujeitas ao R2P a quatro tipos extremos. Em segundo lugar, porque atribui a responsabilidade de proteger primariamente aos Estados, que devem ser assistidos nesta tarefa pela comunidade internacional. Em terceiro lugar, porque só no caso de eles falharem manifestamente e de os meios pacíficos se revelarem ineficazes é que ela pode intervir militarmente e só se obtiver autorização do CSNU.

Não surpreende, portanto, que tenha havido apenas um caso de aplicação do R2P nos seus três pilares. A Resolução 1973, aprovada pelo CSNU em 2011, autorizou a NATO a intervir cirurgicamente na Líbia para proteger civis em Benghazi. Esta IH teve fortes repercussões neste debate porque a aliança excedeu completamente o mandato do CSNU de proteger os civis, operando mudança de regime (Carati, 2017; Kuperman, 2013). A NATO teve uma conduta inconsistente com o propósito da Resolução, apoiando rebeldes que queriam derrubar Qadaffi (com sucesso), o que prolongou a guerra civil e resultou em mais mortes (Kuperman, 2013).

Alguns Estados que já tinham reservas em relação ao R2P, como a Rússia e a China, confirmaram que, de facto, a sua aplicação podia constituir uma violação séria à soberania estatal e que a ‘politização dos direitos humanos’ seria um pretexto perigoso para os Estados Ocidentais interferirem nos assuntos internos dos Estados (China & Rússia, 2019). A partir da Líbia, a norma do R2P foi fortemente contestada, especialmente o terceiro pilar. Apesar de os Estados concordarem em princípio com o que ela postula, contestam a sua forma de aplicação, resistindo cada vez mais à possibilidade de intervenções militares não consentidas. Isto foi visível no caso da Síria, onde nenhuma proposta deste tipo conseguiu a aprovação do CSNU.

A institucionalização e robustez desta norma é clara; resta ver quais serão os caminhos futuros de aplicação concreta e se conseguirá ultrapassar estas divisões. Por enquanto, parece que o debate da década de 90 permanece aceso e será certamente interessante de acompanhar.

Diogo Machado
Aluno de Mestrado em Relações Internacionais: Governança Global e Teoria Social
Universidade de Bremen & Universidade Jacobs

Referências

Alkopher, T. D. (2016). From Kosovo to Syria: The transformation of NATO Secretaries General’s discourse on military humanitarian intervention. European Security, 25(1), 49–71. https://doi.org/10.1080/09662839.2015.1082128

Carati, A. (2017). Responsibility to protect, NATO and the problem of who should intervene: Reassessing the intervention in Libya. Global Change, Peace & Security, 29(3), 293–309. https://doi.org/10.1080/14781158.2017.1384719

China, & Rússia. (2019). Joint statement of the People’s Republic of China and the Russian Federation on the development of a comprehensive strategic partnership for collaboration in the new era. Bilaterals.Org. https://www.bilaterals.org/?joint-statement-of-the-people-s

Kuperman, A. J. (2013). A Model Humanitarian Intervention? Reassessing NATO’s Libya Campaign. International Security, 38(1), 105–136.

Welsh, J. M. (2013). Norm Contestation and the Responsibility to Protect. Global Responsibility to Protect, 5(4), 365–396. https://doi.org/10.1163/1875984X-00504002

Wheeler, N. J. (2000). Reflections on the legality and legitimacy of NATO’s intervention in Kosovo. The International Journal of Human Rights, 4(3–4), 144–163. https://doi.org/10.1080/13642980008406897

Wheeler, N. J., & Bellamy, A. J. (2014). Humanitarian intervention and world politics. Em J. Baylis, S. Smith, & P. Owens (Eds.), The globalization of world politics: An introduction to international relations (6th ed). Oxford University Press.