A Escola Inglesa (EI) nasceu enquanto abordagem teórica consciente no Reino Unido, no final da década de 50 do séc. XX, aquando o início das reuniões do British Committee on the Theory of International Politics (Buzan, 2014). No seu seio, teorizaram muitos pensadores influentes das Relações Internacionais (RI) de várias gerações, desde James Mayall, Hedley Bull, Martin Wight e Adam Watson a Barry Buzan, Tim Dunne, Richard Little e Christian Reus-Smit.
A EI reúne contributos distintos e é uma teoria cujas fronteiras são difíceis de definir (Buzan, 2001). No entanto, o seu desenvolvimento ocorreu em contraposição com a lógica norte-americana e materialista do sistema internacional, tido como a distribuição do poder material. Em vez disso, os pensadores deste movimento intelectual propuseram-se a pensar as RI em termos mais sociais e sociológicos à volta do conceito de sociedade internacional, que enfatiza as regras, valores e instituições partilhadas que compõem a sociedade de Estados (Acharya and Buzan, 2019). “The main thrust of the English School’s work has been to uncover the nature and function of international societies, and to trace their history and development” (Buzan, 2001). Pode-se, por estas razões, dizer que a EI antecipou o surgimento do construtivismo no final da década de 80.
Mas tendo em conta a diversidade interna, como podemos descrever a EI como uma abordagem teórica coerente? Buzan (2001, 2004) propôs uma espécie de denominador comum a todos os que se inserem na Escola Inglesa, que pode ser entendido como o núcleo desta teoria: os seus três conceitos-chave e a sua metodologia plural ou eclética. Primeiro, olhemos para os conceitos:
· Sistema internacional. Este conceito parte de uma ontologia materialista que olha para as RI como constituídas por Estados que interagem numa estrutura anárquica em lógicas de power politics (Buzan, 2001, 2004, 2014). É, na prática, equivalente ao neorrealismo de Waltz e seus associados, utilizando, portanto, uma epistemologia positivista e metodologias materialistas e racionalistas, assim como teorias estruturalistas (Buzan, 2014);
· Sociedade internacional designa “a group of states (or, more generally, a group of independent political communities) which not merely form a system, in the sense that the behaviour of each is a necessary factor in the calculations of the others, but also have established by dialogue and consent common rules and institutions for the conduct of their relations, and recognise their common interest in maintaining these arrangements” (Watson and Bull, 1984). Este conceito vai além do de sistema internacional, na medida em que atenta na institucionalização de identidades e interesses mútuos entre Estados, colocando a criação de normas, regras e instituições partilhadas no centro da análise (Buzan, 2001, 2004, 2014). À semelhança do conceito anterior, também assenta numa ontologia estatal, mas adiciona-lhe um elemento social – os entendimentos intersubjetivos que os envolvem, condicionando o comportamento e identidades dos Estados (Buzan, 2014). É abordado com uma epistemologia construtivista e uma metodologia histórica.
· Sociedade mundial (‘World Society’). Coloca indivíduos, organizações não-estatais e a população mundial, em última instância, como referentes, tendo, por isso, um claro paralelo com o transnacionalismo (Buzan, 2001, 2004, 2014). Tem uma forte componente normativa, também chamada Revolucionismo, pois propõe-se a transcender o sistema de Estados nas RI, construindo uma forma de cosmopolitismo universal, isto é, uma comunidade global que tenha o indivíduo como ponto de referência (ibidem). Como é evidente, não assenta numa ontologia estatal e é abordado sobretudo do ponto de vista da teoria crítica, mas não só
O grande argumento da EI é, justamente, a possibilidade de combinar e articular estes conceitos, o que permite uma leitura holística das RI pela análise das suas diferentes dimensões. Como vimos, a EI privilegia também o ecleticismo ou pluralismo metodológico. Contra as abordagens positivistas e behaviouristas, Bull sempre defendeu a dita abordagem clássica focada na História, no Direito e na Teoria Política (Buzan, 2014). No entanto, a verdade é que a EI é mais diversa do que isto.
Antes de mais, ela concilia análises normativas com analíticas; ademais, não se fechando a fatores materiais e a hipóteses causais, o trabalho da EI foca-se mais no histórico e no social, isto é, “the ideational forces, the rules of conduct, the intentionality of the actors, and the normative tensions and problems generated by the interplay of these factors” (Buzan, 2014). Assim, o ecleticismo metodológico – que vai desde o positivismo até à hermenêutica, interpretativismo e teorias críticas – é uma consequência da diversidade de conceitos e objetos de estudo da EI (Buzan, 2014).
Tendo tecido estas considerações gerais, cumpre-nos agora elaborar mais alguns conceitos importantes. Dentro do conceito de sociedade internacional, de longe o mais definido e trabalhado da EI, existe uma divisão eminentemente normativa entre os pluralistas, que privilegiam a ordem, e os solidaristas, que privilegiam a justiça:
· Pluralismo: “the communitarian disposition towards a statecentric mode of association in which sovereignty and non-intervention serve to contain and sustain cultural and political diversity. It is in this general sense status quo orientated and concerned mainly about maintaining interstate order” (Buzan, 2014);
· Solidarismo: “the disposition either to transcend the states-system with some other mode of association or to develop it beyond a logic of coexistence to one of cooperation on shared projects” (Buzan, 2014). Está ligado a preocupações cosmopolitas liberais de justiça, enfatizando que ordem sem justiça é indesejável (ibidem).
Por último, falta-nos abordar um conceito absolutamente central para o estudo das sociedades internacionais: as instituições. “Primary institutions are durable and recognised patterns of shared practices rooted in values held commonly by the members of interstate societies, and embodying a mix of norms, rules and principles” (Buzan, 2004). Além de constrangerem o comportamento dos Estados, elas também têm um efeito constitutivo nas suas identidades e interesses. Buzan (2004) identifica as instituições primárias da sociedade internacional contemporânea: soberania, diplomacia, territorialidade, gestão de grandes potências, igualdade humana, mercado, nacionalismo e responsabilidade ambiental.
Em certos tipos de sociedade internacional, as instituições primárias dão origem a instituições secundárias, que correspondem às organizações internacionais no sentido neoliberal do termo, como a ONU, o FMI, a OMC, inter alia (Buzan, 2014). A associação entre os dois tipos de instituições é clara: por exemplo, o FMI é uma instituição secundária que resulta da instituição primária ‘mercado’, o CSNU deriva da instituição ‘gestão de grandes potências’ e por aí adiante (Buzan, 2004).
Em virtude deste aparato conceptual vasto, como se aplica empiricamente a teoria? Não podemos de forma nenhuma fazer uma cobertura exaustiva do trabalho empírico da EI, mas podemos dar alguns exemplos. Analisando o caso do Tribunal Penal Internacional, Ralph (2005) argumentou que este se tratou de um momento constitucional da sociedade internacional, pois o facto de ele poder retirar jurisdição aos Estados em certos casos constituiu um avanço rumo a uma sociedade mundial.
The Expansion of International Society, o trabalho clássico de Bull e Watson (1984), representa uma primeira tentativa de analisar a expansão global da sociedade internacional europeia depois da II Guerra Mundial e da descolonização. Este trabalho foi depois revisto e atualizado por Dunne e Reus-Smit (2017), num volume editado em que vários autores analisam a evolução das suas principais instituições e outros aspetos dentro do léxico da EI. Cumpre-nos destacar o capítulo de Buzan (2017) sobre a evolução da instituição da soberania como um exemplo extraordinário do potencial teórico do conceito de ‘instituição’. Aí, ele analisa a mudança ao longo do tempo das normas e regras integrantes da soberania, nomeadamente a passagem de uma soberania dividida – em que só o Ocidente detinha direitos soberanos e explorava a periferia – para uma soberania universal, onde todos os países coexistem em igualdade soberana.
The Making of Global International Relations, co-autorado por Acharya e Buzan (2019), parte também do conceito de sociedade internacional para explicar como esta evoluiu desde as revoluções da modernidade no séc. XIX até à contemporaneidade. Os autores falam das diversas versões de sociedade internacional, desde uma western-colonial a uma post-western, atentando nas mudanças institucionais e normativas que ocorreram, como, por exemplo, o declínio do colonialismo e do racismo após a II Guerra Mundial. Este empreendimento é feito a partir de uma perspetiva emancipatória que procura iluminar como a História das RI negligencia os contributos e realidades do Sul Global.
Muitos mais exemplos existiriam, desde logo os contributos teóricos de Bull (2002) em The Anarchical Society. Não cabendo todos aqui, resta-nos reiterar o valor da EI para as RI devido ao seu pluralismo conceptual e metodológico vasto, que permite analisar várias dimensões da política internacional. Esta abordagem, muitas vezes apelidada de via media entre o realismo e o liberalismo, constitui-se como um recurso muito útil e poderoso para quem estuda RI e permanece extremamente relevante na produção de conhecimento na disciplina.
Diogo Machado
Aluno de Licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais
NOVA-FCSH
Referências
Acharya, A. and Buzan, B. (2019) The Making of Global International Relations: Origins and Evolution of IR at its Centenary. Cambridge: Cambridge University Press.
Bull, H. (2002) The Anarchical Society: A Study of Order in World Politics. 3a Edição. Basingstoke: Palgrave Macmillan.
Buzan, B. (2001) ‘The English School: An Underexploited Resource in IR’, Review of International Studies, 27, pp. 471–488. doi: 10.1017/S0260210501004715.
Buzan, B. (ed.) (2004) From International to World Society?: English School Theory and the Social Structure of Globalisation. Cambridge: Cambridge University Press. doi: 10.1017/CBO9780511616617.009.
Buzan, B. (2014) An Introduction to the English School of International Relations: The Societal Approach. Cambridge/Malden, MA: Polity.
Buzan, B. (2017) ‘Universal Sovereignty’, in Dunne, T. and Reus-Smit, C. (eds) The Globalization of International Society. Oxford: Oxford University Press, pp. 227–247.
Dunne, T. and Reus-Smit, C. (eds) (2017) The Globalization of International Society. Oxford, New York: Oxford University Press.
Ralph, J. (2005) ‘International society, the International Criminal Court and American foreign policy’, Review of International Studies, 31(1), pp. 27–44. doi: 10.1017/S0260210505006285.
Watson, A. and Bull, H. (eds) (1984) The Expansion of International Society. Oxford: Oxford University Press.