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Desde 2015 que o termo Crise de Refugiados é um verdadeiro hot topic, dando a impressão de que nunca anteriormente tinha a Europa sido palco de elevados fluxos de refugiados ou requerentes de asilo, assim como de outras tipologias de migrantes. Ainda que, em termos absolutos, esta vaga se apresente maior do que anteriores vagas migratórias, a verdade é que é também seguro admitir que esta situação não é novidade no contexto europeu – tendo já havido outros momentos em que a Europa foi palco de grandes fluxos migratórios, com aumentos muito consideráveis no número de refugiados e requerentes de asilo, como foi o caso da Guerra da Jugoslávia e consequentes conflitos armados na Península Balcânica (Sousa, 2019).
No entanto, a perceção europeia relativamente a migrantes não só mudou desde as vagas supracitadas, como ganhou relevância para as agendas governativas – o mundo atual não é o mesmo que nos anos 90, principalmente devido à Globalização, como tal, a agenda securitária global evoluiu também para melhor servir as preocupações das populações quanto às ameaças da atualidade. É neste sentido que a perceção, associada aos estudos de segurança, ganha uma nova importância, com o surgimento do conceito de segurança societal, definido por Ole Wæver (2008) como a sensação de necessidade de defesa de uma comunidade contra uma ameaça percecionada à identidade dessa mesma comunidade. Esta ideia está na base da inevitável securitização da Migração e dos migrantes, contribuindo para a disseminação do migrante como perigoso e diferente – o “Outro” que constitui uma ameaça à identidade europeia.
Para corroborar, no Outono de 2015, os cidadãos europeus elegeram a imigração como a sua maior preocupação, com uma subida de 20 pontos percentuais em relação ao semestre anterior, segundo dados do Eurobarometer (Comissão Europeia, 2018). Desde então, a imigração tem sido uma constante no primeiro lugar do ranking de preocupações dos europeus, tendo descido para segundo lugar apenas uma vez entre 2015 e 2018 (Comissão Europeia, 2018) – em 2017, quando se deu uma subida da preocupação face ao terrorismo, coincidente com ataques em solo europeu. Esta preocupação tem origem em diversos aspetos – muitos falam de receio de uma crise a nível económico, levando, também, à perceção dos migrantes como ameaças à estabilidade económica dos Estados e aos seus empregos (Dullien, 2016) –, mas são casos como o da Dinamarca que espelham bem aquela que é, na minha opinião, a principal preocupação por de trás da discriminação para com os migrantes – a dicotomia “Nós vs. Outros”.
E no meio de todas estas perceções e preocupações europeias, perdemos de vista aquele que é, e deveria ser sempre, o nosso objetivo – o de acomodar da melhor forma possível aqueles que, por uma miríade de razões, se viram forçados a abandonar tudo o que conheciam em busca de um futuro melhor.
Schengen facilita a vida a todos os europeus. Acho que nunca conheci um europeu, Europeísta ou Eurocético, que não lhe reconhecesse as suas devidas qualidades. No entanto, teremos noção daquilo que Schengen custa, não só aos não-cidadãos do Espaço Europeu, mas especialmente àqueles que provêm de zonas de conflito e se veem forçados a abandonar os seus países de origem? A maneira como nós, Europeus, circulamos livremente pelo Espaço Schengen, existe às custas de um aumento no controlo das fronteiras externas de Schengen e, consequentemente, às custas da vida de muitos seres humanos, que – devido aos processos burocráticos infindáveis e de difícil acesso para aqueles que se encontram a viver em países em desenvolvimento, em cenários de conflito, sem acesso àquilo que nós, todos os dias, consideramos como dado adquirido – se veem incapazes de chegar à Europa pelas vias consideradas legais (Jeandesboz e Pallister-Wilkins, 2016).
Durante meses a fio, em 2015 e 2016 principalmente, vimos surgir imagens sem fim de corpos amontoados, com e sem vida, a chegar às costas italiana, grega e turca, mas provavelmente nunca entenderemos o desespero que é olhar para a travessia mediterrânea, “the most lethal border of the World” (Sousa, 2019), como uma opção mais viável àquela que é a forma legal – cuja morosidade, complicação e difícil acesso não pode ser a solução para as pessoas que, por estarem inseridas em cenários de grande violência, precisam de respostas imediatas – tornando o Mediterrâneo, com todos os riscos que acarreta, uma alternativa preferível a tudo o que deixam para trás.
A verdade é que a securitização das fronteiras externas do Espaço Schengen impede quem precisa de auxílio e abrigo de chegar até nós, de forma segura e legal (Jeandesboz e Pallister-Wilkins, 2016).
Países como a Dinamarca, muitas vezes uma referência em termos de Direitos Humanos e qualidade de vida, serem comparados à Áustria e à Hungria (Bendixen, 2021), pelas atitudes que tomam em relação a refugiados e requerentes de asilo, não é só vergonhoso, é também caminhar na direção contrária no que toca a uma luta que deveria primar pela proteção, defesa, bem-estar e integração – enfim, pelos Direitos Humanos Universais – daqueles que procuram refúgio e abrigo no espaço Europeu, uma luta em defesa de pessoas que existem, que têm nomes e famílias, uma história e identidade próprias, e uma casa que se viram forçados a abandonar. Em vez disso, parece existir uma luta para uma Dinamarca – ou, como é objetivo de muitos, uma Europa –, livre do peso económico e ameaça representada pela migração irregular, livre de refugiados.
A prova viva disso é o facto da primeira-ministra dinamarquesa ter definido como um dos seus objetivos alcançar os zero requerentes de asilo a chegar à Dinamarca (Nyheder TV2, 2021) – importa relevar que, no ano de 2020, foi registado o número mais baixo de requerentes de asilo desde 1998 (Nyheder TV2, 2021), por isso, este objetivo não poderá estar propriamente relacionado com um aumento no fluxo de migrantes. Para além disso, a utilização de termos como coercive force (Nyheder TV2, 2021), argumentando que deveria ser exigido mais destas pessoas – como por exemplo, a adoção de “the Danish values” (Nyheder TV2, 2021) –, e pregando uma ideia de assimilação e subversão muito pouco característica daqueles que são considerados os valores europeus, numa União Europeia que se apresenta, no palco internacional, como um ator Normativo, movido pelos seus valores, normas e ideais, e não por interesses económicos ou políticos.
Benxiden (2021) escreve “Two years ago, the government passed legislation turning the concept of refugee protection upside down: It replaced efforts at long-term integration and equal rights with temporary stays, limited rights and a focus on deportation at the earliest possibility. Paradoxically, this came at a time when Denmark received the lowest number of refugees in 30 years”, comprovando o que foi dito no início do artigo: existe um problema na perceção dos dinamarqueses – ou pelo menos na das suas lideranças –, mas não existe, nem nunca existiu, um fluxo tão descontrolado de migrantes e refugiados que pressionasse os sistemas de auxílio ao ponto da rutura. O que existiu, e continua a existir, no entanto, é uma utilização do conceito “Crise” – com tudo aquilo a que este está associado, como “insegurança”, “ameaça” ou “mudança inesperada e indesejada” – em relação aos Refugiados, a fim de se justificar um crescente controlo das fronteiras e da vida dos refugiados e requerentes de asilo dentro de território nacional, porque, no final de contas, ameaças têm que ser controladas e estas pessoas são, infelizmente, vistas como ameaças.
A isto se junta a decisão inumada de se considerar a Síria um espaço seguro, retirando a legitimidade dos migrantes que pedem asilo por questões de segurança (McKernan, 2021; Observador, 2021), algo que não parece fazer sentido nenhum na cabeça de ninguém, mas que não impediu a Dinamarca de recusar pedidos de renovação a requerentes de asilo sob o pretexto da situação na Síria ser agora mais segura (McKernan, 2021; Observador, 2021). No Índice de Desenvolvimento Humano, a Síria está em 151º (Institute for Economics & Peace, 2020). Segundo o Global Peace Index (Ibid.) a Síria é – em 163 países – o segundo espaço mais inseguro do mundo, lugar que já ocupava nos anos anteriores – apenas ultrapassado pelo Afeganistão. Para contraste, entre esses mesmo 163 Estados, a Dinamarca é o 5º país mais seguro do mundo – mesmo após anos a ser “invadida” por “pérfidos refugiados”, os mesmos que tentam agora recambiar para o segundo país mais inseguro do Mundo sem necessidade aparente (Ibid.).
Atualmente, refugiados são sempre sinónimo de Crise, é só mesmo uma pena que a Europa ainda não tenha acordado para perceber que a Crise existe, mas é para aqueles que aqui chegam, e não tanto para os Europeus.
Catarina Reis
Mestranda em Ciência Política e Relações Internacionais
NOVA-FCSH
Bibliografia
Bendixen, M. C. (10 de março de 2021). Denmark has gone far-right on refugees. Obtido de Politico: https://www.politico.eu/article/denmark-has-gone-far-right-on-refugees/?fbclid=IwAR17eB9ElvOcXXYDDEvVy_0RI6Ai0DNeSaz2N64d4HozE1a-AlfqVQWoXms
Comissão Europeia (2018). Eurobarometer 90 – “Public opinion in the European Union, First results” [pdf]. Bruxelas: Comissão Europeia. Disponível em: https://europa.eu/eurobarometer/surveys/detail/2215
Institute for Economics & Peace (2020). Global Peace Index 2020: Measuring Peace in a Complex World. Sydney. Disponível em: http://visionofhumanity.org/reports.
Jeandesboz, J. e Pallister-Wilkins, P. (2016). Crisis, Routine, Consolidation: The Politics of the Mediterranean Migration Crisis. Mediterranean Politics, 21(2), 316-320.
McKernan, B. (14 de abril de 2021). Denmark strips Syrian refugees of residency permits and says it is safe to go home. Obtido de The Guardian: https://www.theguardian.com/world/2021/apr/14/denmark-revokes-syrian-refugee-permits-under-new-policy
Nyheder TV2. (22 de janeiro de 2021). Mette Frederiksen: Målet er nul asylansøgere til Danmark. Obtido de Nyheder TV2: https://nyheder.tv2.dk/politik/2021-01-22-mette-frederiksen-malet-er-nul-asylansogere-til-danmark
Observador (16 de abril de 2021). Dinamarca nega pedidos de renovação de residência a 189 refugiados sírios. Obtido de Observador: https://observador.pt/2021/04/16/dinamarca-nega-pedidos-de-renovacao-de-residencia-a-189-refugiados-sirios/
Sousa, C. U. d. (2019). How to break the security-migration nexus and ensure a human rights-based management of international migration?. Em C. U. d. Sousa, (Ed.), The relevance of migration for the 2030 Agenda for Sustainable Development: The Global Compact for Safe, Orderly and Regular Migration (pp. 107-147). Universidade Autónoma de Lisboa.
United Nations Development Programme (2020). Latest Human Development Index Ranking – HDR 2020. Obtido de Human Development Reports: http://hdr.undp.org/en/content/latest-human-development-index-ranking
Wæver, O. (2008). The Changing Agenda of Societal Security. Em H. G. Brauch, et al. (Eds.), Globalization and Environmental Challenges: Reconceptualizing Security in the 21st Century (pp. 581-593). Springer.