As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.
A personagem de Roald Dahl, o Big Friendly Giant, parece, ao início, ser um monstro que come crianças, quando, na verdade, é um gigante que se alimenta exclusivamente de vegetais e está encarregue de levar sonhos bons às crianças de todo o mundo. Será este, também, o caso da União Europeia: uma aparência complexa e até assustadora, que, na verdade, protege os nossos sonhos?
Em 1951, após o desfecho de Segunda Guerra Mundial, criou-se a CECA, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Assim, deu-se o primeiro passo no projeto a que Schuman sonhou e denominou “Estados Unidos da Europa”. Ora, o que muitos têm na ideia, é o facto de que a integração europeia começou e devia ter acabado com a fusão da economia dos diferentes membros. No entanto, o objetivo primeiro era garantir que uma guerra como a de 1939-1945 não se repetisse em espaço europeu, daí resulta que o primeiro passo foi o controlo de matérias-primas para a produção de armamento. Mas, o objetivo último era a criação de uma federação europeia, tal como o nome indica, começando pela junção das diversas economias. A criação do mercado comum seria a primeira etapa deste projeto que, com o passar do tempo, alterou a sua direção.
Assim, importa referir alguns marcos históricos da Integração Europeia, como o Tratado de Roma, assinado em 1957, criando a Comunidade Económica Europeia e, com ela, o mercado comum, bem como o Ato Único Europeu, de 1986, que derrubou as fronteiras no que toca ao fluxo de mercadorias, serviços, capital e trabalho.
Já em 1992, assinou-se o Tratado de Maastricht, que formalizou a União Europeia nos três pilares que conhecemos hoje: a Comunidade Europeia, a Política Externa se Segurança Comum (PESC) e a cooperação nos domínios da justiça e dos assuntos internos. Criou-se, ainda, a união monetária e, com ela, o euro.
Finalmente, em 2007, assinou-se o Tratado de Lisboa, que, na prática, se concretizou no Tratado da União Europeia (TUE) e o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). Para além disso, o Tratado veio alterar fundamentalmente diversas regras de tomada de decisão, como, por exemplo, a perda de veto dos Estados-Membros numa série de domínios políticos e, ainda, a ampliação de poderes do Parlamento Europeu, o único órgão diretamente eleito pelos cidadãos europeus (Moury 2016).
Passemos, agora, a uma breve explicação das diversas instituições que compõem a União Europeia, bem como as suas funções. Em primeiro lugar, abordar-se-á a Comissão Europeia. Este órgão é composto por vinte e sete comissários, um por cada Estado-Membro. É de carácter supranacional e tem como objetivo defender os interesses da União como um todo (Moury 2016). Para além disso, a Comissão é considerada a “Guardiã dos Tratados”, uma vez que é responsável por fazer cumprir os mesmos, bem como a legislação europeia. Constitui o ramo executivo de governo, detendo o monopólio da iniciativa legislativa, bem como o da representação no estrangeiro, com exceção do domínio da política externa e de segurança (Moury 2016). É responsável, ainda, por negociar e assinar Tratados Internacionais.
A Comissão é “controlada” pelo Parlamento Europeu, visto que este último a pode dissolver.
Por sua vez, o Parlamento Europeu é o ramo legislativo, detendo, também, um carácter supranacional. Como anteriormente mencionado, é o único órgão eleito diretamente pela população europeia, para mandatos fixos de cinco anos. Fazem parte desta instituição 705 deputados europeus, eleitos segundo um critério proporcional (de habitantes), ou seja, quanto mais populoso é o país, mais assentos preenche no Parlamento. Assim, o país que elege menos deputados é Malta, com 6, e o país que mais assentos preenche é a Alemanha, com 96. Portugal elege 21 eurodeputados. Estes estão agrupados por famílias políticas e não partidos, dividindo-se, também, em comités de trabalho, responsáveis pela elaboração de legislação de um domínio político específico, sendo essa legislação aprovada em reuniões plenárias, normalmente, por maioria simples.
Para além de poderes legislativos, detém, também, poderes de supervisão, uma vez que é responsável pelo controlo democrático de todas as instituições da UE. É, ainda, responsável pela definição do orçamento da União, juntamente com o Conselho.
Atentando, agora, no Conselho da União Europeia, este órgão é de carácter intergovernamental e é considerado o órgão decisório, ainda que nunca o faça sozinho. É composto pelos diferentes Ministros dos Estados-Membros e foi desenhado para representar os interesses dos mesmos. Não existe participação fixa, o que quer dizer que o Conselho se reúne por setor, dependendo do assunto a debater. Juntamente com o Parlamento, adota legislação e define o orçamento. Para além disso, desempenha um papel decisivo na negociação de Tratados Internacionais, podendo decidir se a Comissão os negoceia, ou não, qual o conteúdo sobre o qual deve deliberar, podendo, ainda, supervisionar essa mesma negociação.
A presidência deste órgão é rotativa (semestral). Todavia, para evitar a mudança brusca na orientação de Política Externa, definiu-se que um grupo de três Estados-Membros, um grande, um médio e um pequeno, que determinam as orientações gerais da Política Externa por um período de 18 meses. Esta presidência é a que Portugal integra a partir deste mês, juntamente com a Alemanha (o semestre anterior) e a Eslovénia (o semestre seguinte).
Por último, abordar-se-á o Conselho Europeu. Este órgão é, também, de carácter intergovernamental, sendo responsável por definir as orientações gerais e prioridades políticas da UE. Trata de questões complexas e sensíveis que não podem ser resolvidas a outros níveis de cooperação, no entanto, não exerce funções legislativas.
É importante referir que existem agências e organizações na UE, que não detêm carácter político. O Tribunal de Justiça é o principal órgão de justiça (Moury 2016), enquanto o Banco Central Europeu é a entidade reguladora da moeda única. Para além destas instituições, existem outros organismos como a Frontex, a agência responsável pela gestão das fronteiras externas; a Satcen, a agência responsável pela gestão dos satélites da União Europeia, ou ainda o Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia (EIT). Conclui-se, deste modo, que existe uma diversidade de agências europeias que complementam a ação das instituições políticas mencionadas anteriormente.
Ora, o modo de tomada de decisão não é comum a todas as áreas políticas. Fala-se então, de vários “modos de governação europeia” (Moury 2016, p.18). Estes são o modo supranacional e o modo intergovernamental. O primeiro é utilizado pelos órgãos supranacionais na adoção da legislação. Legislação essa que recai sobre a competência exclusiva da UE, ou seja, matérias em que os Estados-Membros acordaram que competem apenas à União tratar. A saber: a união aduaneira, regras de concorrência do mercado interno, a política monetária, a conservação dos recursos biológicos do mar, a política comercial comum e ainda a competência para celebrar Tratados Internacionais. No caso do modo intergovernamental, a Política Externa de Segurança Comum é frequentemente citada. As suas decisões, embora vinculativas para os diferentes Estados-Membros e instituições da União, não estão sujeitas à jurisdição do Tribunal de Justiça Europeu, o que quer dizer que pertencem ao domínio do Direito Internacional (Moury 2016).
Uma questão abundantemente debatida é a da definição da própria UE: será um produto do Direito Internacional, uma Organização Internacional ou um sistema político?
Sem dúvida que compõe um sistema legal sui generis (Barnard & Peers 2017), mas também poderá ser considerada uma organização internacional, visto que é fruto de Tratados Internacionais que estabeleceram órgãos independentes por vontade dos signatários (Barnard & Peers 2017). Poderia, ainda, ser considerada um sistema político, dado que possui as características necessárias: um regime constitucional, os tratados, que definem claramente os poderes a exercer pelas instituições e pelos Estados-Membros, o facto de que as decisões afetam diretamente a vida dos cidadãos e, por último, eleições, neste caso para o Parlamento que permitem aos cidadãos influenciar as decisões tomadas, pelo menos teoricamente (Moury 2016).
Mas, entre tantas siglas e jargão, o que querem os autores dizer quando escrevem que as decisões afetam diariamente a vida dos cidadãos? O que é que a UE faz por mim?
Recomendo vivamente a visualização do site: https://what-europe-does-for-me.eu/en, onde podemos consultar, por país ou ainda região, os projetos financiados, patrocinados ou implementados pela União.
No caso de Portugal, encontra-se, por exemplo, o túnel do Marão, financiado pela União Europeia que ajudou a reequilibrar a diferença do PIB entra o Grande Porto e as regiões adjacentes. No centro do país, a UE financiou a reabilitação de 12 vilas históricas. No Douro, a União Europeia ajudou a criar o projeto INTERACT, da Universidade de Trás-os-Montes que visa desenvolver tecnologias para uma agricultura responsável e sustentável. No Algarve, financia custos de vários projetos do setor do turismo.
A nível da União, mecanismos como o Centro de Coordenação de Resposta a Emergências (CCRE) protege os cidadãos de desastres naturais e assiste na sua resposta. Por outro lado, o Regime de Comércio de Licenças de Emissões de Carbono impõe um limite para as emissões de cada indústria, mas os “direitos” de emissão podem ser trocados entre empresas. Esta iniciativa já demonstrou resultados positivos na diminuição de emissões de Gases com Efeito Estufa (GEE) (Ostrom 2010).
Deste modo, pode ver-se que a União Europeia compõe um pouco de todos os aspetos da vivência europeia, passando muitas vezes despercebida.
No entanto, é importante notar que o sistema que tenho vindo a descrever não é perfeito. Existem graves problemas como o défice democrático, que foi algo mitigado aquando a assinatura do Tratado de Lisboa. Adicionalmente, a crescente onda de populismo que assombra a Europa não facilita a tarefa das instituições, como testemunhado pelo bloqueio do orçamento por parte da Hungria e da Polónia este ano. Para além disso, o euroceticismo também se enquadra nos desafios lançados à União Europeia. Ceticismo esse que pretendo combater, ao tentar demonstrar a vastidão de domínios onde a UE beneficia e auxilia os cidadãos europeus.
No que toca ao problema da soberania, não se pode argumentar, em boa consciência, que alguma dela não foi cedida. No entanto, a União não detém a competência das competências, ou seja, possui competência para legislar apenas sobre assuntos acordados pelos Estados-Membros, o que implica que a soberania perdida foi aquela decidida pelos Membros, aquando a assinatura dos Tratados.
Em suma, este complexo sistema de governação enfrenta várias dificuldades já mencionadas. Todavia, podemos ver, também, que a UE traz consigo inúmeros benefícios com implicações bem visíveis no dia-a-dia de cada cidadão.
Termino este texto adaptando uma célebre frase de Winston Churchill: tal como a democracia, a UE é também o pior sistema tirando todos os outros. Acrescento, ainda, que considero que a União Europeia, o “nosso gigante azul”, traz consigo sonhos e não pesadelos!
Sara Amorim
Mestranda em Conflict & Development Studies
Ghent University
Referências
Moury, C. (2016). A Democracia na Europa. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos
Barnard, C. & Peers, S. (2017) European Union Law. UK: Oxford University Press
Ostrom, E. (2010). Polycentric systems for coping with collective action and global environmental change. Global Environmental Change, 20(4), 550-557. doi:10.1016/j.gloenvcha.2010.07.004
https://what-europe-does-for-me.eu/pt
https://www.europarl.europa.eu/factsheets/pt/chapter/209/o-funcionamento-da-uniao-europeia