As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.
A administração Biden, especialmente na pessoa do Secretário de Estado Antony Blinken, tem repetido em múltiplas ocasiões que a China representa uma ameaça para a rules based-order. Esta ordem, naturalmente liderada pelos EUA no imaginário deste país, seria o garante da estabilidade global e a China estaria determinada em derrubá-la e instaurar uma nova ordem moldada à sua imagem, no caminho destruindo as instituições, normas e princípios assumidos como liberais e benignos.
O problema desta visão norte-americana tão partilhada pelos media e academia ocidentais é dual. Por um lado, ela parte de uma conceção pouco rigorosa (e ‘americo-cêntrica’, se assim pudermos dizer) da ordem mundial (Esplin-Odell, 2021). Por outro lado, ela exagera os desafios apresentados pela China à mesma e contribui para alimentar a postura agressiva já em lugar em relação a este país, o que, por seu turno, promete escalar ainda mais as tensões entre a China e os EUA (ibidem). Cumpre-nos, por isso, fazer uma avaliação mais rigorosa (e ideologicamente desvinculada) da relação entre a China e a ordem internacional.
O primeiro passo é explicitar ao que nos referimos quando falamos de ‘rules-based order’. A história convencional da dita ordem internacional liberal é contada por Ikenberry (2001, 2011). Este autor diz-nos que esta ordem foi construída entre os países ocidentais no final da II Guerra Mundial, sendo liderada e dominada pelos EUA. É uma ordem hegemónica e liberal em simultâneo porque: (i) a potência dominante opera num sistema de regras e instituições consentido e negociado com as potências de segunda ordem, que, embora lhe confira vantagens decorrentes do seu estatuto de poder, limita o exercício arbitrário de poder; (ii) a potência dominante disponibiliza um conjunto de public goods em troca da aquiescência das outras potências, que inclui segurança e um sistema de comércio livre; (iii) a ordem contempla canais e redes de comunicação e influência recíprocas, o que dá às potências de segunda ordem influência na governança da ordem (Ikenberry, 2011). Na prática, a ordem internacional do pós-Guerra Fria constituiu uma expansão daquela que já existia entre os EUA e outras democracias ocidentais, assentando na expansão do comércio livre, na promoção da democracia e na integração de outras potências num sistema multilateral institucionalizado e recíproco.
As críticas a esta definição são várias (Acharya, 2018; Reus-Smit, 2013; Stuenkel, 2016), mas o que nos interessa por agora é que a ordem internacional liberal, que podemos chamar ordem mundial porque compreende quase a totalidade do globo, está longe de ser um entidade monolítica, liberal e exclusivamente Americana, apesar de ter partido da dita ordem pós-1945. A definição convencional ignora a agência de países não-ocidentais, que foi bastante relevante na edificação de normas relacionadas, por exemplo, com as intervenções humanitárias e a soberania (Stuenkel, 2016). A ordem mundial, embora com uma clara tendência liberal nos seus princípios, é composta, na verdade, por múltiplas ordens diferentes entre si – a do comércio, a financeira, do desenvolvimento, dos direitos humanos, militar, entre outras –, umas menos, outras mais liberais (Johnston, 2019). Para analisar esta ordem e a relação da China com a mesma, temos que avaliar como interage com cada uma delas.
Sendo estas sub-ordens tão diferentes, às vezes internamente contestadas, outras vezes conflituantes entre si, não é surpreendente que “China interacts differently with different orders, supportive of some, unsupportive of others, and partially supportive of still others” (Johnston, 2019). Dizer que a China desafia por completo a ordem, ou que a apoia por completo, ignora a complexidade do objeto de análise e levará a conclusões erróneas sobre a postura deste país em relação à ordem.
É preciso então ver como a China se comporta em relação a estas sub-ordens, tarefa que, executada na sua totalidade e complexidade, requereria muito mais espaço do que aquele de que dispomos. Faremos apenas uma leitura breve e tão compreensiva quanto possível da postura da China em relação às sub-ordens.
Refinando a nossa definição, convém recorrer à definição de ordem internacional de Tang (2016) para caraterizar a ordem em causa. O autor descreve-a em quatro dimensões – escopo geográfico, distribuição de poder, instituições, interiorização – das quais nos interessam essencialmente a segunda e a terceira. Há que conceder a Ikenberry que a ordem é alicerçada numa distribuição de poder material muito desequilibrada em favor do Ocidente, especialmente dos EUA. Apesar de essa diferença ser cada vez mais reduzida, isto ainda é visível nas organizações internacionais (OI) da ordem, por exemplo, na ONU, FMI e Banco Mundial. Nestas, as potências ocidentais têm um poder absolutamente desproporcional à distribuição de poder real, o que leva autores como Acharya (2018) a classificar isto como uma relação de dominação.
As hierarquias acentuadas da ordem nas suas arenas institucionais permanecem, talvez, o principal objeto de crítica das potências não-ocidentais, incluindo a China, que procuram reformá-las para lhes darem mais poder e mais voz (Stuenkel, 2016). Quando isto não acontece por resistência dos EUA e associados, a China e outros naturalmente criarão as suas próprias OI que lhes permitirão projetar o seu poder e concretizar as suas aspirações legítimas: BRICS, AIIB, etc. O Ocidente teima em ver estas OI como um desafio à ordem, mas a verdade é que elas são concordantes com os seus valores; na maioria, complementam, em vez de substituir, as funções das OI convencionais e, melhor que isso, representam um compromisso de países como a China em fornecer public goods e a obedecer a regras e fóruns multilaterais (Stuenkel, 2016).
Relativamente à terceira dimensão, já expliquei noutro lugar o que entendo por instituições. Partindo desse conceito, a ordem internacional é marcada por múltiplas instituições, das quais destacamos três por razões de espaço: a soberania, que implica o respeito pela integridade territorial dos restantes Estados e a não-interferência em assuntos internos; os direitos humanos, que obrigam os Estados, pelo menos em teoria, a respeitar vários direitos considerados fundamentais dos indivíduos, especialmente direitos civis e políticos; e o mercado, que promove o comércio entre Estados e a remoção de barreiras alfandegárias e não-alfandegárias.
Em relação à primeira, a China ressalta várias vezes a sua defesa de uma visão absoluta de soberania, em conformidade com os 5 princípios da Conferência de Bandung (Muller, 2016). A maior evidência do respeito do país por esta instituição é o seu historial relativamente à agressão e interferência em assuntos domésticos:
“It has not gone to war since 1979. It has not used lethal military force abroad since 1988. Nor has it funded or supported proxies or armed insurgents anywhere in the world since the early 1980s. That record of non-intervention is unique among the world’s great powers. All the other permanent members of the UN Security Council have used force many times in many places over the last few decades — a list led, of course, by the United States” (Zakaria, 2020).
Perante estes dados, é curioso como a China é retratada muitas vezes como um país agressivo ou expansionista. É mais curioso ainda como o país que mais frequentemente retrata a China desta forma – os EUA – é talvez aquele que mais vezes desrespeitou estas regras. O argumento invocado neste sentido são as atitudes da China no Mar do Sul da China, nomeadamente as suas reivindicações territoriais expansivas, recusa de aceitar decisões judiciais e arbitragem de tribunais internacionais, assim como a militarização de ilhéus, recifes e superfícies semelhantes (Rato, 2020). Se é verdade que as reivindicações chinesas não têm fundamento legal e que a China se tem mostrado disposta a usar a força, nunca até agora ultrapassou o patamar da agressão definido pelo direito internacional (Mazarr, Heath, & Cevallos, 2018).
O desrespeito pelos territórios dos vizinhos e pelo Direito é evidente, mas isto não pode ser interpretado como um sinal de uma China disposta a recorrer à força, muito menos como um desafio à ordem mundial. Primeiro, porque se trata de um episódio isolado, numa região muito localizada e específica, que de forma nenhuma afeta a ordem no geral nem reflete o comportamento da China. Segundo, porque a China considera estes territórios parte dos seus core interests e, ao longo da história, sempre foi considerado legítimo que as grandes potências os tivessem. Assim se compreende esta atitude mais assertiva da China quanto a estes territórios – são interesses dos quais a China não abdica. Os EUA também têm os seus e violaram as regras várias vezes para os concretizar.
Isto não é dito para legitimar as atitudes ilegais da China, mas sim para se dimensionar corretamente este problema no contexto da ordem internacional e para relevar o double standard utilizado para o julgar. No geral, terminamos dizendo que o apoio da China à instituição da soberania é robusto e claro, embora hajam algumas nuances quando os seus interesses estão em causa.
Em relação aos direitos humanos, é evidente que a China viola um conjunto grande de direitos civis e políticos em casa, ao mesmo tempo que procura reformar esta instituição no sentido de privilegiar os direitos sociais e económicos em conjunto com outros países não-ocidentais (Breslin, 2018). No entanto, a China tem participado nas organizações internacionais de direitos humanos e assinou e retificou a maioria dos tratados relativos aos mesmos (Kinzelbach, 2013; Nathan, 2016). Existe um paradoxo: o seu cumprimento das normas é fraco, ao mesmo tempo que apoia e participa no regime internacional (Zhang & Buzan, 2019).
Na verdade, a China não tem intenções de cumprir estas normas, mas também não quer derrubar esta instituição – quer, sim, reformá-la por dentro. A China, assim como muitos outros países não-ocidentais, tem uma visão distinta de direitos humanos, defendendo que devem estar subordinados à soberania de cada Estado e não o contrário (Carrai, 2019). Será então que a China, Estado autoritário e repressivo, representa uma ameaça à sub-ordem dos direitos humanos?
É certo que as violações que a China comete são preocupantes e que a comunidade internacional deve fazer esforços no sentido de lhes pôr termo. No entanto, a verdade é que a China não representa uma grande ameaça à instituição dos direitos humanos, que tem grande legitimidade, porque: i) não a desafia abertamente nem procura ativamente a sua destruição; ii) participa nas suas organizações, tratados e fóruns; iii) não existe qualquer prova de que está a tentar exportar o seu modelo político autoritário para outros países nem a apoiar autoritarismos (Johnston, 2019). É por esta razão que enquadrar a China como inimigo numa luta mundial pela democracia contra a ditadura à la la Guerra Fria não tem qualquer fundamento e só servirá para aumentar tensões. A China tem como core interest a preservação do seu sistema político, mas não tem qualquer desejo de o expandir ou de erodir a democracia. Enquanto assim for, a China não representará grande ameaça para os direitos humanos ou a democracia, particularmente se pensarmos que o modelo chinês tem pouquíssima atratividade. Isto não invalida que tenham de ser feitos esforços no sentido de persuadir a China a respeitar os direitos humanos dos seus cidadãos, especialmente quando são uma parte tão significativa da população mundial.
Em relação ao mercado, a China é, desde o final da década de 70, uma economia de mercado e demonstra-se comprometida com este modelo de desenvolvimento. A China reconhece os benefícios que o mercado lhe trouxe e está altamente integrada nos tratados e acordos de comércio livre, apresentando-se como o maior parceiro comercial de muitos Estados. A tarifa alfandegária média era de 30% no período de Mao; em 2017 estava abaixo dos 4% (Johnston, 2019). É curioso como em 2017, enquanto os EUA saíam de vários acordos comerciais e impunham tarifas alfandegárias, Xi Jinping (2017) fazia um discurso célebre em Davos a defender inequivocamente o mercado livre.
Mas à semelhança da instituição anterior, o cumprimento das normas do mercado tem nuances na realidade. Ainda existe roubo de propriedade intelectual, transferências de tecnologias forçadas como condição de acesso ao mercado chinês e subsídios a empresas nacionais (Mazarr et al., 2018; Williams, 2020). O Estado interfere bastante na economia, promovendo grandes empresas públicas e vantagens injustas a empresas nacionais, protegendo ambas da concorrência internacional (Economy, 2018; Xing & Shaw, 2013). É evidente que se tratam de violações das regras e que a comunidade nacional deve pugnar pelo seu cumprimento para tornar a concorrência com os outros países mais justa no espírito do mercado livre. Contudo, a China configura-se como um apoiante indiscutível do mercado mundial, que considera essencial para o seu desenvolvimento. Assim, este país não deseja de forma nenhuma revogar esta instituição, mas sim mantê-la ou até aprofundá-la.
Chegados ao fim desta reflexão, chegamos à conclusão de que a China não quer de forma nenhuma destruir ou substituir a ordem internacional por uma sua; nem a apoia completamente como os seus líderes muitas vezes nos querem fazer crer. A China apoia algumas dimensões da ordem, enquanto desafia ou deseja reformar outras. À medida que o seu poder cresce, é natural que vá sendo mais vocal quanto aos seus interesses e valores. A capacidade de a ordem se adaptar aos mesmos será fundamental para determinar o apoio da China em relação àquela.
Para já, é evidente que na ordem permanece um viés liberal e uma hierarquia injusta pró-Ocidente que a China, poder emergente com uma cosmovisão não-ocidental e não liberal, contestará. A maioria dos que dizem que a China quer destruir a ordem tomam a ordem como o domínio ocidental ou americano – isto, claro, a China não aceitará. A ordem, todavia, é muito mais do que isto e a postura da China varia consoante a instituição ou sub-ordem. Apesar disto, e para concluir, parece-nos que o comportamento da China até agora não indicia agressão ou revisionismo, mas sim uma atitude construtiva de crítica e reforma ao que pretende mudar em virtude de um compromisso geral (não total) com as normas, organizações e Tratados da ordem internacional.
Diogo Machado
Licenciado em Ciência Política e Relações Internacionais
NOVA-FCSH
Referências
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