Rojava: resistência feminina e libertação social

                                                                                                       As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.

Os curdos são um povo não-árabe com um passado de subjugação marcado por guerras, genocídios, abusos sexuais, deslocações em larga escala, intervenções capital-imperialistas e destruição da vida rural (Çağlayan, 2019). 

Atualmente, ainda vítimas de colonialismo, estão divididos entre quatro Estados-Nação – Turquia, Síria, Iraque e Irão. Existem várias políticas assimilacionistas e repressivas contra a cultura curda, nomeadamente os conflitos com o Estado turco que culminaram em 2011 na morte de 40 mil pessoas e na deslocação forçada de 1 milhão de curdos (Göksel, 2019). Ora, sem direito internacional a um território enquanto povo, os curdos são manipulados como peões em prol da manutenção de poder dos Estados. Assim sendo, escolheram resistir e instaurar a Federação Democrática do Norte da Síria (FDNS), não reconhecida internacionalmente (Cartier, 2019).

Aslan (2020) advoga que as mulheres sempre foram importantes nas revoluções, ainda que o patriarcado tenha continuado marcante, mesmo em revoluções socialistas. Ora, apesar de a visibilidade feminina ter aumentado aquando da luta das guerrilheiras curdas contra o Estado Islâmico na década passada, desde os anos 80 que o papel feminino é crucial na revolução curda (Çağlayan, 2019) – a revolução é política, ecológica, societal, mas principalmente patriarcal. 

Tradicionalmente, a identidade cultural curda está construída em torno da visão de família hierárquica patriarcal. Assim, a mulher (curda) sofre uma dupla escravatura (Öcalan, 2016). É constantemente vitimizada através de uma interseccionalidade da opressão, sofrendo, por um lado, de violência às mãos do patriarcado enquanto mulheres e, por outro, de opressão sistémica enquanto grupo étnico marginalizado (Çağlayan, 2019). Por este motivo, a luta pela emancipação feminina – literal e figurativa – torna-se tão relevante como a luta pela libertação curda (Öcalan, 2016). Torna-se importante dar agencialidade à mulher e renovar os códigos de honra e instituições patriarcais (Çağlayan, 2019). Esta agencialidade é construída através de um diálogo entre vitimização – devido aos traumas a que são sujeitas – e um sentimento de resistência coletivo – não só ao colonialismo e à violência, como também à sociedade patriarcal (Göksel, 2019). 

É no contexto de emancipação feminina que surge a Jineoloji, um estudo que apresenta a metodologia e epistemologia do movimento de mulheres curdas, evidenciando formas de resistência contra as estruturas sociais repressivas e patriarcais (Çağlayan, 2019).  Por este motivo, Jineoloji defende a mulher com posição central na vida quotidiana e no decision-making, bem como a criação de espaços onde não haja estruturas opressivas (Aslan, 2020). Por fim, procura ainda uma redefinição do que é ser‑se mulher, rejeitando ideais de beleza definidos pelos homens ou pela sociedade (Cartier, 2019). 

É esta alteração do papel das mulheres que garante a reposição da liberdade histórica (Öcalan, 2016) pela reclamação do poder ao macho dominante – enquanto autoridade patrimonial sexista – e a reavaliação de dicotomias sociais – como masculinidade-feminilidade ou forte-fraco (Ferreira e Santiago, 2018). A mulher emancipa-se da dominação masculina, mas emancipa também o homem, já que apesar de o patriarcado o apresentar como macho dominador, também a ele o domina. Este processo, intitulado de “matar o homem”, exige a reestruturação da masculinidade contra a dominação unilateral, a desigualdade e a intolerância. É, portanto, necessário combater o parasitismo masculino e construir espaços exclusivamente femininos, cruciais para a libertação das mulheres (Öcalan, 2016).

Este novo olhar crítico rejeita a visão desta como mãe e deusa passiva e, ao mesmo tempo, enquanto objeto sexual. Também a sexualidade é vista como um impedimento à modernidade (Öcalan, 2016), sendo defendido o abstencionismo sexual, tanto masculino como feminino. O corpo feminino (e masculino) passa a ser utilizado para os objetivos da revolução. No entanto, a visão da abstinência como moralmente correta induz a um controlo contraditório sobre o corpo feminino, uma vez que o corpo da mulher continua a ser controlado em prol do movimento, acabando por não existir a tal liberdade de escolha sobre a agencialidade do corpo físico. Pelo contrário, existem normas rígidas e as sanções são tendencialmente mais duras para as mulheres – vistas como instigadoras – o que atenta a possíveis discriminações de género (Çağlayan, 2019). Existem, por isso, incoerências dentro da premissa liberatória.

Ainda assim, a Jineoloji distingue-se do feminismo (neo)liberal ocidental, ao defender uma análise pós-colonial e interseccional (Aslan, 2020). A teoria critica ainda o Orientalismo, i.e., a visão da mulher do Médio Oriente como passiva e dos princípios anti patriarcais como um valor “ocidental” (Çağlayan, 2019). 

Em 2017, a visão da mulher guerrilheira curda sofre uma neo-orientalização, tornando-se supermulher e, em simultâneo, ficando limitada a uma fetichização do male gaze (Shahvisi, 2018). Referências ocidentais a guerrilheiras curdas como os Anjos de Öcalan, a Angelina Jolie curda ou o Anjo de Kobane, não só são reprováveis como são mecanismos – intencionais ou não – para ofuscar as premissas do movimento. 

Ao nível político, defende-se um Confederalismo Democrático, isto é, a instauração de uma nação cultural de democracia direta bottom-top (Cartier, 2019). Esta estrutura assenta em três ideais: municipalismo libertário, pluralismo radical, e ecologia socialista (Cioni, 2019). Na prática, a organização horizontal – com um sistema fluído de instituições, academias, assembleias e cooperativas – surge para responder às necessidades sociais e garantir a autonomia dos povos. A sociedade divide-se em setores, e cada setor está representado no decision-making (Aslan, 2020).

Criam-se, assim, comunas e assembleias locais onde todos os órgãos devem ter 40% de representatividade de cada género – através da copresidência de um homem e de uma mulher –, sendo os restantes 20% de escolha livre. Deve-se também garantir quotas étnicas e religiosas, exceto nos comités étnicos, religiosos ou femininos, desenhados especificamente para cada grupo (González, 2019).

Para a representação feminina existem unidades sociais, políticas e militares que promovem a agencialidade feminina, entendida como forma de resistência contra a desigualdade de género (Çağlayan, 2019). Ao nível social existem entidades de apoios aos mais marginalizados, das quais se salientam duas organizações especializadas no apoio a mulheres: por um lado, Malê Jin, para mulheres vítimas de assédio, violação e violência doméstica; por outro, Asayish-J, para mulheres com mais de 15 anos terem habitação e educação gratuitas (Cartier, 2019). Ao nível político, cada comuna tem um representante de Kongreya Star, Concelho de mulheres de Rojava, composto por várias organizações exclusivamente femininas e com relevância local, regional e central. Este Concelho age no campo civil, político e militar, dividindo-se em cinco áreas de ação: 1) organização comunal, 2) economia comunal, 3) educação, 4) autodefesa, e 5) ensinamentos da Jineoloji, exploração de arte e cultura, tornando as decisões primeiro femininas, e depois de toda a sociedade (Aslan, 2020). Por fim, ao nível militar existe uma fação militar exclusivamente feminina, as Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ) (Dirik, 2017). 

Jinwar, aldeia inaugurada em novembro de 2018, representa o expoente máximo de resistência das mulheres no combate à ordem patriarcal, por ter sido construída e frequentada exclusivamente por mulheres e crianças, com o apoio da Kongreya Star. O objetivo de Jinwar é criar uma cidadania e um autogoverno feminino, coexistindo com as premissas do movimento, de resistência, de autodefesa e de emancipação (Cioni, 2019). Esta aldeia, como protótipo dos princípios do Confederalismo, é particularmente importante, visto a FDNS não ser dominada por mulheres e o patriarcado continuar presente (Cartier, 2019). Aliás, não há evidência empírica que os Curdos tenham predisposição para a resistência ou para a igualdade de género. Ainda assim, é impossível diferenciar a luta das mulheres da luta curda e da resistência da FDNS. 

 

Se, para Öcalan (2016), a libertação das mulheres representa uma revolução dentro da grande revolução curda, a liberdade só é alcançada através da libertação feminina. Assim, a resistência curda constrói-se com a solidificação social, mediante valorização da educação (González, 2019), o ensinamento da história e da Jineoloji – estudo anti patriarcal –, tanto a mulheres como homens (Cartier, 2019). A Jineoloji defende uma teoria de rutura, i.e., a premissa de que é necessário romper com o patriarcado, mas também com discursos reflexivos (Aslan, 2020).

Mónica Correia

Mestranda em Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo

NOVA-FCSH

Referências Bibliográficas

        Aslan, A. (2020). Pensar la revolución desde la autonomia democrática de Rojava: La nación democrática y la liberación de las mujeres. Em M. Lois & A. Akkaya (Eds.), Estrategias descoloniales en comunidades sin estado (pp. 64–86). Catarata.

       Çağlayan, H. (2019). Women in the Kurdish Movement: Mothers, Comrades, Goddesses. Springer Nature.

       Cartier, M. (2019). Serkeftin: A Narrative of the Rojava Revolution. John Hunt Publishing.

       Cioni, F. (2019, Outubro 25). Jinwar, the Place of Women as a Revolutionary Practice. Power to create, power to destroy – TRISE, Atenas.

       Dirik, D. (2017). Self-Defense Means Political Autonomy! The Women’s Movement of Kurdistan Envisioning and Pursuing New Paths for Radical Democratic Autonomy. Development, 60(1), 74–79. https://doi.org/10.1057/s41301-017-0136-3

       Göksel, N. (2019). Gendering Resistance: Multiple Faces of the Kurdish Women’s Struggle. Sociological Forum, 34(S1), 1112–1131. https://doi.org/10.1111/socf.12539 

       Öcalan, A. (2016). Libertando a Vida – a Revolução das Mulheres (S. Granja, Trad.; 1a). Fundação Lauro Campos.

       Shahvisi, A. (2018). Beyond Orientalism: Exploring the Distinctive Feminism of Democratic Confederalism in Rojava. Geopolitics, 0(0), 1–25. https://doi.org/10.1080/14650045.2018.1554564