Rohingya: um caso de complacência perante o genocídio

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O Myanmar foi, durante décadas, um país com uma forte ditadura militar, porém, desde 2010, tem sofrido supostos avanços democráticos, materializados na realização de eleições em 2010 e 2015 – sendo esta última considerada uma eleição livre e democrática. É neste contexto que, em 2016, Aung San Suu Kyi – vencedora de um Nobel da Paz em 1991 pelos seus esforços ativistas em prol da democracia – toma posse como State Counsellor, cargo criado na mesma altura e com poderes limitados (Demy & Shaw, 2019; Frontline, 2018).

Ainda assim, o Governo tem sido complacente com um conjunto de violações de direitos humanos levadas a cabo pelo exército do Myanmar, os Tatmadaw. Estas violações correspondem, na sua maioria, a atentados contra o grupo étnico Rohingya, que faz parte dos cerca de 4% da população muçulmana do país (Demy & Shaw, 2019). Este grupo reside em Rakhine por várias gerações, porém, após a Lei de 1982, foi despido de direitos civis e de cidadania. Desde aí, os Rohingya são percecionados pelo Governo como “imigrantes ilegais” provenientes do Bangladesh (Frontline, 2018). 

Em Rakhine, a maioria da população é nacionalista budista, o que gera tensões religiosas. Em 2012, esta tensão materializou-se em violência, com confrontos entre os muçulmanos Rohingya e os budistas Rakhines. Como resposta, o governo confinou 120 000 Rohingyas em guetos, aumentando a discriminação e o controlo abusivo por parte dos Tatmadav (Frontline, 2018). É neste contexto que surge, em 2016, o Arakan Rohingya Salvation Army (ARSA), um grupo de resistência que atacou três postos militares dos Tatmadav. Como retaliação, o controlo militar foi crescendo ainda mais, sendo reportados posteriormente extrajudicial killings, rape and other forms of sexual violence, arbitrary detention and the unexplained disappearance of Rohingya civilians in Rakhine State” (Cagape, 2020: 4), atos que o governo alegou serem Clearance Operations, num esforço para deter os “terroristas Bengali”. Suu Kyi alegou, à altura, que as medidas adotadas pelo governo em resposta aos incidentes provocados pelo ARSA não estavam a ser desmedidas (Cagape, 2020; Frontline, 2018). A premissa de defesa nacional, aliada à islamofobia – i.e., perceção de que muçulmano é sinonímia de terrorista –, mantém-se visível nos discursos de Suu Kyi, não sendo os Rohingya referidos, apenas existindo menções aos “muçulmanos”.

Em 2018, as Nações Unidas (ONU) denunciaram a incapacidade do Governo do Myanmar de proteger o povo Rohingya dos ataques militares. No Relatório das Nações Unidas (OHCHR, 2018) foi recomendado aos países-membros o uso de “all diplomatic, humanitarian and other peaceful means to assist Myanmar in meeting its responsibility to protect its people from genocide, crimes against humanity and war crimes” (OHCHR, 2018 citado em Cagape, 2020: 2). A ONU pretendia assegurar ainda “accountability for human rights violations and abuses in Myanmar… and supporting comprehensive rule of law and security sector reform in Myanmar in line with international human rights norms and standards” (OHCHR, 2018 citado em Cagape, 2020: 2).

Ao nível humanitário, estes ataques resultaram no aumento do número de pessoas refugiadas que procuraram asilo no Bangladesh. Antes da tomada de posse de Suu Kyi, existiam cerca de 1 milhão de Rohingyas no Myanmar; em oposição, no final do ano de 2017, cerca de 670 000 estavam refugiados no Bangladesh (Demy & Shaw, 2019), tornando a questão um problema internacional.

Inicia-se, nesta fase, uma resistência estatal em permitir a entrada de pessoas estrangeiras no Norte de Rakhine. Para além disso, nem os militares nem o governo admitiam a gravidade dos atos praticados, argumentando tratar-se de atos de contrainsurgência contra “terroristas bengali”, invalidando o Relatório da ONU (2018). Ainda assim, os relatos e as provas documentadas apresentam vários civis não armados sendo vítimas dos atos atrozes supramencionados (Cagape, 2020), provando queTo them, we are all ARSA. Only one thing matters to them ─ we are Muslims and they are not. They just shot anyone they saw” (Nurul Islam in Frontline, 2018).

É por este motivo que, à semelhança do defendido pelos Estados Unidos, tanto o Tatmadaw como o próprio governo de Suu Kyi estão a realizar atos de limpeza étnica e genocídio contra o povo Rohingya (Demy & Shaw, 2019).

A inexistência de aplicação do “Rule of Law” – a complacência do poder nacional

 

À luz do suprarreferido, o sistema legal do Myanmar revelou-se incapaz de prevenir abusos aos direitos humanos, bem como de responsabilizar os culpados pelos atos de violação desses direitos, resultando numa cultura de impunidade “in which the State, in this case the militar and those close to it, rule by law” (Aguirre, 2018 citado em Cagape, 2020: 20) – “So as far as the Myanmar military is concerned, the lesson is that you can use violence against the Rohingya and get away with it” (Phil Robertson in Frontline, 2018).

Afirmar que a discriminação sistemática e atroz, bem como a violência (ou tortura) estatal e os homicídios em massa é “government-sponsored violence against the Rohingya” (Demy & Shaw, 2019: 326) é constar que não existe um rule of law e garantia de direitos humanos na prática. Neste caso em concreto, são acompanhados de uma impossibilidade de equilíbrio de poderes entre o executivo e o militar.  Até que ponto tais atos não podem ser considerados “planned genocide” (Beech 2018 citado em Cagape, 2020: 3) quando um determinado grupo de pessoas é despejado de cidadania, rejeitando um direito básico – “No freemen shall be taken or imprisoned or disseised or exile nor in any way destroyed…” (Magna Carta, 1215 citado em Cagape, 2020: 20) – do qual o sistema legal do Myanmar é herdeiro? 

A responsabilidade da ONU – a complacência da comunidade internacional

 

O artigo 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos defende que “Todo o ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (Unicef, sd.). Este é um dos direitos basilares da vida em sociedade. Ainda assim, a Comunidade Internacional observou, durante décadas, a crescente exclusão do povo Rohingya dos seus direitos. Retirar a cidadania ao individuo é, por si, retirar o direito à segurança, já para não falar do seu direito à identidade e, com a guetização, também o direito à liberdade. Para além disso, The horrific crimes against the Rohingya were committed in a period in which Myanmar had opened up to the outside world – yet outside actors did little to prevent the atrocities.” (Mennecke & Stensrud, 2021: 112). Então, como pode este povo continuar (cada vez mais) ameaçado?

Vários relatórios pré-2016 reportavam atentados à vida dos Rohingya, sendo já nessa altura definidos como “crimes contra a humanidade” pela Human Rights Watch. Só se deu uma “crise Rohingya” internacional quando os fluxos migratórios – involuntários – para o Bangladesh aumentaram em massa. Nesta altura, vários foram os países a condenar o homicídio em massa e a pedir accountability dos perpetuadores e, em menor escala, dos complacentes. No entanto, pouco foi feito para sancionar os envolvidos (Frontline, 2018), recaindo numa ‘quiet diplomacy’ approach (Mennecke & Stensrud, 2021).

Mesmo após este momento, a solução da ONU passava pelo desenvolvimento de soluções por parte de Organizações regionais (i.e., União Europeia e AESAN) e fazer valer a Lei Internacional (OHCHR, 2018 citado em Cagape, 2020). Ora, tal não ocorreu porque as supramencionadas organizações se regem pelo princípio da não-intervenção (Mennecke & Stensrud, 2021). Em momento algum o Conselho de Segurança da ONU lançou resoluções para esta situação. Tal significa que o mecanismo que a ONU dispõe, especificamente para a resolução destes casos, nunca foi ativado. Independentemente das possíveis interpretações e juízos de valor sobre a capacidade ou validade dos meios disponíveis, e.g. o R2P, a existência prática destes mecanismos significa que a sua não-ativação é sinónimo de complacência. Claro que, analisando a situação, o uso da força para fins humanitários seria provavelmente vetado e verifica-se, então, um esforço não governamental para ajuda humanitária. No entanto, a inexistência de debate no Conselho torna questionável a existência de tais meios. Tal como Mennecke & Stensrud (2021: 111) defendem “‘Never again’ has turned into again and again”.

Ora, a ONU predispôs-se, no entanto, à criação de um “independent inquiry into the United Nation‟s involvement in Myanmar since 2011, with a view to establishing whether everything possible to prevent or mitigate the unfolding crises was done” (OHCHR, 2018 citado em Cagape, 2020: 2). Ainda assim, a aprendizagem institucional da ONU não deveria ocorrer às custas de milhares de Rohigya.

Simultaneamente, a ineficiência e incapacidade da ONU em “democratizar” o Myanmar e estabelecer a paz é cada vez mais evidente. Em 2015, a Comunidade Internacional olhou para a eleição de Aung San Suu Kyi como o início da era democrática da Myanmar. Tal não ocorreu, aliás verificou-se “rounding up [of] civilians, you know, burning their houses, slicing the throats of children, you know, raping pregnant women and then disemboweling them(Zeid Ra’ad Al Hussein in Frontline, 2018). Nessa altura, existiram pedidos para a deposição da Counsellor, mas tal não ocorreu. Em fevereiro de 2021, Suu Kyi foi deposta, mas pelas forças de Tatmadaw, e instaurou-se uma Ditadura Militar, retrocedendo a (muito questionável) jornada democrática do Myanmar para a estaca zero. Como resposta, o povo retaliou e tal significou o aumento da repressão bem como a morte de pelo menos 700 pessoas e a detenção e/ou desaparecimento de 3000 (Mennecke & Stensrud, 2021).

Carolina Correia

Mestranda em CPRI com especialização em RI

NOVA-FCSH

Mónica Correia

Mestranda em Migrações Inter-Etnicidades e Transnacionalismo

NOVA-FCSH

Bibliografia

Aguirre, D. (2018). Rule by Law and Impunity Undermine Prevention of and Accountability for Human Rights Violations in Myanmar. Tea Circle Oxford. https://teacircleoxford.com/2018/06/04/rule-by-law-and-impunity-undermine-prevention-of-and-accountability-for-human-rights-violations-in-myanmar/

 

Beech, H. (2018). Myanmar’s Military Planned Rohingya Genocide, Rights Group Says. https://www.nytimes.com/2018/07/19/world/asia/myanmar-rohingya-genocide.html

 

Cagape, W. G. (2020). DENIAL OF THE ROHINGYA GENOCIDE: PROBLEMATIZING c AUNG SAN SUU KYI AND THE «RULE OF LAW» IN POSTCOLONIAL MYANMAR.

 

Demy, T. J., & Shaw, J. M. (2019). Religion and Contemporary Politics: A Global Encyclopedia. ABC-CLIO.

 

Frontline. (2018). Myanmar’s Killing Fields—Transcript. FRONTLINE. https://www.pbs.org/wgbh/frontline/film/myanmars-killing-fields/transcript/

 

Mennecke, M., & Stensrud, E. E. (2021). The Failure of the International Community to Apply R2P and Atrocity Prevention in Myanmar. Global Responsibility to Protect, 13(2–3), 111–130. https://doi.org/10.1163/1875-984X-13020013

 

OHCHR. (2018). https://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/FFM-Myanmar/A_HRC_39_64.pdf

 

SBS Dateline. (2018, Maio 15). Myanmar’s Killing Fields: A special investigation into the mass exodus of Rohingya. https://www.youtube.com/watch?v=b36zu02aN4g

 

UNICEF. (sem data). Declaração Universal dos Direitos Humanos. Obtido 22 de Novembro de 2021, de https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos