As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.
Este artigo pretende basear-se e analisar o fenómeno de Precarity Chains, mais concretamente tendo como estudo de caso os fluxos migratórios do Sul Global. Importa, numa fase inicial compreender que abordar Migrações é algo difícil. Estamos perante um tema altamente politizado, sensível e com diversas interpretações. Finalmente, estamos perante uma área de conhecimento científico onde o consenso entre investigadores é algo raro. Definições de conceitos são altamente contestadas um pouco por todo o espetro da área. É importante ter esta ideia em mente quando se analisa este tema.
É igualmente interessante analisar migrações do tipo Sul-Sul, principalmente visto que as migrações que ocorrem entre países considerados do Sul Global são movimentos bem mais frequentes do que aquilo que normalmente é antecipado pelo Ocidente. Por fim, a escolha da temática Precarity Chains deve-se à relevância que este tipo de fluxo ainda tem na vida de várias pessoas ao longo do Sul Global, não sendo uma realidade largamente retratada e analisada em Portugal.
Precarity chains, ou correntes de precariedade em português, referem-se à transferência de insegurança financeira e de oportunidade de emprego através do espaço e do tempo. Trata-se de ciclos de marginalidade, endividamento e dependência persistente.
É deixada aos migrantes muito pouca agência: raramente são capazes de controlar o seu destino e mais improvável ainda é conseguirem melhores condições de vida daquelas que dispunham à partida.
Para ilustrar este conceito, iremos focar-nos no trabalho de Silvey & Parreñas (2019) sobre um dos maiores grupos de mulheres migrantes no mundo, especialmente no tipo de migração Sul-Sul: trabalhadoras domésticas sudoeste-asiáticas que migram para os Emirados Árabes Unidos (EAU).
Estas mulheres têm de recorrer a agências que, subsequentemente, as enviam para um país-destino que apresente uma oportunidade de emprego. Ora, não só não podem escolher nem o seu empregador nem o país onde são colocadas, como não sabem que condições irão encontrar aquando a sua chegada.
Para além disso, estas agências cobram taxas pelo seu serviço de brokering que chegam a alcançar 8 meses de salário. Finalmente, se porventura conseguirem ultrapassar todos estes obstáculos, estas mulheres estão sujeitas ao sistema Kafala, mais precisamente, o controlo total do empregador sobre a vida da(s) sua(s) empregada(s): definem quando recebe salário, e qual a quantia (o mínimo estabelecido não é, normalmente, aplicado) qual a duração ou se têm sequer direito a férias e folgas, em que alturas estão ou não autorizadas a sair de casa. Como se estas condições não fossem já deploráveis, as migrantes não podem pedir a rescisão do contrato e o patrão terá capacidade para as fazer deportar dos EAU. E ainda, não dispõem de estatuto de trabalhadoras.
Deste modo, estas mulheres encontram-se presas em ciclos de contratos como este, pois nunca conseguem libertar-se destas correntes que as restringem: o contrato, o empregador, a falta de recursos financeiros e o endividamento, permanecendo, assim, neste ciclo de precariedade.
É então crucial apostar-se no combate a este novo tipo de trabalho precário, quer seja com políticas de integração, quer através de programas de apoio. Ao analisarmos, de forma geral, a integração de migrantes, é fácil concluir que existe um conjunto de limitações que os migrantes em geral enfrentam ao chegar a um país de destino: quer seja por não partilharem a língua de origem, por não terem uma identidade cultural semelhante, por serem marginalizados pela Sociedade em geral, ou por não terem qualquer tipo de rede de apoio (quer seja o apoio de uma Comunidade pré-estabelecida, de um conjunto de pessoas que partilhem a mesma língua, a mesma religião ou que detenham um entendimento mútuo sobre as adversidades dos fluxos migratórios).
No caso concreto de migrantes que chegam ao país através do serviço de brokering, a situação complica-se: na sua grande maioria são migrantes femininas, que emigram sozinhas com a promessa de que vão melhorar a sua vida e alcançar o “sonho”. Não só não detêm nenhuma base de apoio no país de destino, como por vezes nem conhecem a língua do país para o qual são enviadas. Tornam-se assim sombras marginalizadas num país desconhecido – muitas encontram-se em situação irregular ou, estão de tal forma limitadas pelo controlo do patronato, que são totalmente segregadas no país de destino e não têm forma de pedir auxílio.
O surgimento de vários movimentos que pretendem abolir o sistema Kafala, forçou a um novo olhar sob a relação patronato-empregador. Se o patronato é o único responsável pela estadia do trabalhador no país de destino, então estamos a abordar uma nova visão de escravatura moderna em que o trabalhador “deve a sua vida” a quem o emprega e, por isso, não pode simplesmente libertar-se e o trabalho torna-se a sua vida. Mais, em países como o Líbano, os trabalhadores não podem sequer sair do país sem a autorização do empregador – se decidem escapar deste controlo são considerados migrantes irregulares, não recebem qualquer tipo de ordenado, indemnização e, podem até ser multados, apreendidos e até deportados.
Para além das condições precárias de trabalho, muitas mulheres migrantes são ainda alvo de violência (física e verbal), horas de trabalho não renumerado, abusos sexuais, privação e falta de condições de trabalho e vida, restrição no acesso à rede de saúde, entre outros. Esta questão, com a evolução da pandemia, só piorou. Analisando o caso de trabalhadoras no Líbano, estima-se que existam mais de 25 000 migrantes a trabalhar em casas de patrões (EqualityNow 2020). Dada a situação da pandemia, durante o ano de 2020 muitas ficaram confinadas com o seu patrão, sendo forçadas a uma maior carga horária sem qualquer tipo de pagamento, ou então acabam despedidas e sem qualquer tipo de rendimento ou rede de apoio, acabam a viver em situação de sem abrigo e sem condições para retornar ao seu país de destino.
Prevê-se assim que esta precariedade continue e até aumente, escalando para uma crise humanitária se continuarmos a assistir a constantes despejos e maus tratos por parte do patronato, sem que exista uma rede de proteção por parte do Estado-Nação, e sem o conhecimento internacional. Não podemos esperar até que seja tarde de mais – sendo que para muitas migrantes já o é. É importante apresentar uma visão das Migrações mais diversificada que apenas aquilo que é retratado pelos media. Por fim, importa conscientizar que, embora o fenómeno das correntes de precariedade não deveria ser uma realidade em nenhuma parte do globo no século XXI, continua a ser a realidade para várias migrantes. Não podemos fingir que tal não é um problema internacional.
Mónica Correia
Mestranda em Migrações, Inter-Etinicidades e Transnacionalismo
NOVA-FCSH
Sara Amorim
Mestranda em Conflict & Development Studies
Ghent University
Fontes
https://www.migrant-rights.org/campaign/end-the-kafala-system/
https://qz.com/africa/1924751/african-workers-in-lebanon-stranded-and-unpaid-by-kafala-labor/
https://www.equalitynow.org/covid_kafala_system
https://slavefreetoday.org/lebanon-domestic-workers-in-the-shadow-of-kafala-system-and-covid-19/
Silvey, R. & Parreñas, R. (2019) Precarity Chains: cycles of domestic worker migration from Southeast Asia to the Middle East; Taylor & Francis Group https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/1369183X.2019.1592398?journalCode=cjms20