Porque é que o género não desparece nas RI? – um olhar feminista sobre a narrativa ocidental das Relações Internacionais

Representation of the world, like the world itself, is the work of men; they describe it from their own point of view, which they confuse with absolute truth.

 

– Simone de Beauvoir

 As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.

Infelizmente, tal como se revela na grande maioria dos ramos de alta especialização teórica e académica, o campo das Relações Internacionais é, desde o seu estado embrionário, uma representação bastante fidedigna do man’s world feito pelo “work of men”, como Simone de Beauvoir o expõe (Tickner, 1992), sendo, portanto ainda uma conceção bastante masculinizada (Passos, 2017). Basta realizarmos um pequeno exercício mental, como refletir sobre o que pensa quando imagina um teórico, especialista, comentador de TV, professor catedrático, diplomata, embaixador ou um major-general, para concluir que todas estas profissões de relevo na área das relações internacionais se encontram ainda bastante enraizadas na perspetiva masculina, nomeadamente europeia e ocidental, sendo possível alegar a existência mesmo de um male gaze específico nas relações internacionais. O propósito deste artigo é expor as desigualdades ainda bastante presentes no campo das relações internacionais, através da explicação do conceito de género para evidenciar a artificialidade da narrativa ocidental a que temos sido expostos.

Em primeiro lugar, vamos começar por explicar a controversa definição de género. Ao contrário do conceito de sexo (que significa sinteticamente a determinação biológica que todos possuímos, associada à genitália), o género trata-se de um termo muito mais complexo, com as suas raízes e variações muito interligadas com bases sociais e culturais, sem possuir uma ligação direta com o sexo. Resumidamente, o género trata-se, como as palavras de Judith Butler (2003, p.59) o definem como “a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser” (Butler, 2003 in Firmino e Porchat, 2017). A definição de Butler expõe, de uma maneira elaborada, o sistema complexo que os conceitos irmãos de sexo e género estabelecem entre si – numa dinâmica naturalmente interdependente uma da outra, são as conceções de género do que é ser uma mulher ou um homem na sociedade significam, bem como o tipo de comportamentos e pensamentos que é suposto serem direcionados a cada polo, que estabelecem essa associação errónea com o sexo -, uma conceção bastante artificial e com um teor social enorme. A ideia aqui refutada é a naturalização do fenómeno de encaixotar cada sexo para um tipo de responsabilidades distintas na sociedade logo no ventre, como se a ideia de cada um nascer para ser o que a sociedade considera que sejam características de homem ou mulher (azul para meninos e rosa para meninas, bem como a distinção de brinquedos em tenra idade), que fomentam socialmente essa falsa ligação do género ao sexo (Firmino e Porchat, 2017). No entanto, como o género se trata de uma construção social, 1) não é o facto de nascermos com o sexo feminino ou masculino que isso nos faz mulheres ou homens, para além da nossa designação biológica; mas sim 2) é a socialização a que somos expostos desde tão cedo que molda o comportamento e, logo, a conceção de mulheres e de homens na nossa sociedade (Tickner, 1992).

Posto isto, tentamos levar este pensamento feminista à área das relações internacionais, onde nos deparamo-nos com escolas, como a realista, onde a tática agressiva de uma perspetiva belicosa, de agressão e contra agressão e a lógica maquiavélica de dividir para reinar, da existência de um inimigo que se constitui como ameaça existencial ao nosso Estado, não podem deixar de ser percecionadas através da lente crítica feminista. Numa sociedade profundamente masculinizada, construída e dominada pelo pensamento de homens, torna-se urgente estudar a influência que o género podem ter na forma como cada indivíduo pensa e atua, e como tal a sua respetiva influência em estratégias como o controlo, a guerra e a imposição das suas violências.

Como Cynthia Enloe (1989) o disse, a questão “Onde é que estão as mulheres |nas RI?” (Enloe, 1989 in Foot, 1990) é ainda bastante pertinente e visível, pois ao continuarmos a utilizar as lentes do male gaze europeu, saudosista dos tempos coloniais, xenófoba e sexista (apesar de o camuflar incessantemente com o slogan de que se trata do “continente mais evoluído em termos dos Direitos Humanos” – algo bastante problemático também até pelas raízes de distanciamento estabelecidas entre “países civilizados = países ocidentais” e “países não civilizados” ou designações como “países de terceiro mundo”, que intersetam pontes com o “resto do mundo africano e asiático em desenvolvimento”). A normalização deste tipo de discursos, permite o aprofundamento do racional das mentes europeias e ocidentais em narrativas que não refletem nem metade da população, refletindo-se numa dificuldade cada vez mais crescente para o reconhecimento dos erros dessas mesmas sociedades -, algo fundamental para se exercer efetivamente algum tipo de mudança neste sentido. 

De facto, quando se afirma que as RI seriam um terreno bastante diferente se esta fosse uma área com mais mulheres, referimo-nos concretamente a encararmos o género não só enquanto uma característica social, mas também uma forma de percecionar o outro e de estabelecer o seu lugar na sociedade. A partir do momento em que cada um é influenciado mental e socialmente logo à nascença para um tipo específico de socialização posicionada em polos opostos (feminina – para o meio doméstico e da maternidade, “protegido” da vida real, onde a exterioridade é menos aceitável e tenta-se que seja mais calma e pacata –; e a masculina – incentivada para as atividades físicas, movimento, o enaltecimento da violência como resposta e uma cultura da vergonha no que toca à exposição de emoções), de modo a que um complete o outro, por serem tão opostos (Firmino e Porchat 2017)

Contudo, o que fazemos, na realidade, é condenar seres humanos, futuros estadistas ou académicos das várias áreas e especializações para um tipo de narrativa e panorama específico. Não se deixa um legado de pensamento crítico e livre, mas sim o seguimento de um histórico de violência e preconceitos, que desafiam a nossa própria escolha para a representação dos nossos ideais, vontades, lutas, gostos e objetivos. Falar de género nas Relações Internacionais, mais do que qualquer outra área, trata-se de um grito individual pela representação igualitária na sociedade enquanto parte de um grupo social. 

Neste sentido, como é que nos podemos considerar aptos ou capazes de recebermos a informação que temos como a verdade absoluta, como Simone de Beauvoir o afirma na citação anterior, quando, no fundo, a história que aprendemos, as notícias que assistimos e a linguagem que reproduzimos tratam apenas a vocalização de uma minoria da população ocidental europeia e masculina?

Para concluir, deixamos aqui a citação de Eleanor Roosevelt, no seu discurso na Assembleia-Geral das Nações Unidas em 1952 (Tickner, 1992), que sumariza perfeitamente a ainda infeliz realidade vivida pelas mulheres em meios profissionais amplamente masculinizados, como o académico, numa personificação pela numa personificação pela voz de todas as mulheres, que se sentem silenciadas, desencorajadas e nas sombras dos “grandes homens”.

Too often the great decisions are originated and given form in bodies made up wholly of men, or so completely dominated by them that whatever of special value women have to offer is shunted aside without expression.

– Eleanor Roosevelt

O ponto final deste artigo é o de expressar votos de esperança, de que este cenário mude futuramente e votos de esperança para que este cenário mude futuramente e todas as mulheres e homens tenham um dia a possibilidade de virem a poder libertar-se dos estereótipos de género e viver uma vida integralmente livre, onde o destino de cada um não é traçado pelas características físicas que possuímos, pelo território onde nascemos e onde o futuro e projeções de sucesso não nos são dificultadas por sermos de um certo sexo ou etnia.

Beatriz Costa
Aluna de Ciência Política e Relações Internacionais

NOVA-FCSH

Bibliografia

Beauvoir, S. (1949). The Second Sex. Paris. V.1, p. 161.

 

Foot, R. (1990) Feature Review: Where Are the Women? The Gender Dimension in the Study of International Relations. Oxford: Oxford University Press.

 

Firmino, F. H. e Porchat, P. (2017). Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de Género”. São Paulo: Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras, Araranquara.

 

Passos, R. D. (2017). Mulheres e género nas Relações Internacionais: para além das “prisões cotidianas” e epistemológicas. Marília: Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, v.3, n.1, p. 47-64.

 

Porto Editora – sexo no Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2022-03-24 01:27:19]. Disponível em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/sexo

 

Tickner, J. A. (1992). Gender in International Relations – Feminist Perspectives on Achieving Global Security. New York: Columbia University Press.