ONU: a protelada, impreterível e inevitável reforma

 As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.

 

 


 

 

“If the United Nations is to survive, those who represent it must bolster it; those who advocate it must submit to it; and those who believe in it must fight for it.” Norman Cousins

 

 

A citação que dá início a este artigo remonta a 1956 e é da autoria de Norman Cousins, jornalista que desde que os primórdios do exercício do seu ofício orientou a sua ação pela defesa intransigente de um quadro de relacionamento pacífico entre players no xadrez internacional.

As seis décadas que nos distanciam da sua proclamação não a tornam menos pertinente no contexto atual, particularmente no mês subsequente ao início do calendário diplomático, mês em que teve lugar a Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque.

A ideia de regular as relações entre os Estados tem raízes profundas e causas que à luz da contemporaneidade são inteligíveis. Durante o Renascimento surgiram tratados bilaterais que regulavam questões como o comércio, alianças e fronteiras. Na sequência das guerras Napoleónicas, no Congresso de Viena (1814-1815) surgem os primeiros laivos do que hoje concebemos como Direito Internacional – princípios que visam a obtenção de equilíbrios de poder entre as potências europeias cujos interesses se começavam a sobrepor.  Os equilíbrios incidiam sobre dois eixos: o poder e o Direito.

A Organização das Nações Unidas é o corolário de uma época histórica e de circunstâncias de natureza política:  a incapacidade da Sociedades das Nações em evitar a crise económica resultante da Grande Depressão, a ascensão de líderes totalitários que instrumentalizam o descontentamento social e a intensificação da competição geopolítica entre nações que aspiravam aumentar a sua esfera de influência – fatores que inevitabilizaram o regresso da guerra ao velho continente.

Polarizado, conflituoso e globalizado é a tríade de adjetivos que caracterizam  o século XX. Duas guerras mundiais num espaço temporal de quatro décadas são reveladoras da dificuldade de construção de uma matriz pacifista num continente órfão de esperança e repleto de intemperança.

No século XX a Europa mergulhou em dois conflitos de que não existia memória, que não tardaram a estender-se a outros continentes. As principais dinâmicas com verdadeiro impacto no panorama internacional transcendem as fronteiras dos países dos quais elas são originárias e tal premissa tornou a criação de um organismo que promovesse a convivência pacífica entre Estados verdadeiramente imperativa.

No decurso da Segunda Guerra Mundial, a 14 de agosto de 1941 foi emitida uma declaração conjunta pelo presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, e pelo primeiro-ministro do Reino Unido, Winston Churchill. A Carta do Atlântico delineava os princípios chaves que deveriam orientar as lideranças políticas do pós guerra visando a concepção de um mundo alicerçado nos ideais da justiça, liberdade, cooperação internacional e direito à autodeterminação. Este documento é a semente do que quatro anos depois, a 24 de outubro de 1945, assumiria a forma de Organização das Nações Unidas (ONU).

Representantes de 50 países reuniram-se na cidade costeira de São Francisco e assinaram a Carta da Organização das Nações Unidas em que a honrosa missão de defesa da paz é confiada a uma entidade coletiva a que é feita referência no preâmbulo “We the people”.

O documento possui uma dimensão binária: pretende ser o espelho da distribuição de poder e concomitantemente dar enfoque à dimensão humanista das relações internacionais.

Em linha com a tradição histórica foram as potências triunfantes que definiram a ordem mundial que daí em diante vigoraria. O Conselho de Segurança, órgão nevrálgico da Organização, possui 15 membros, entre os quais 5 membros permanentes – Estados Unidos da América, França, Rússia, Reino Unido e República Popular da China – dotados de uma faculdade de suma importância : poder de veto.

A imprescindibilidade de realização de reformas no  organismo ao qual foi entregue no pós Segunda Guerra a defesa da Ordem Mundial voltou a estar no centro da reflexão no seio da Assembleia Geral das Nações Unidas.

Para a compreensão dos contornos deste debate é imperativo que conheçamos a arquitetura institucional da ONU, particularmente do Conselho de Segurança, e as adaptações que a passagem do tempo imprimiu na sua estrutura.

As críticas elencadas incidem sobre dois eixos: a falta de representatividade e a ausência de equidade. As respostas a estes desafios residem numa reflexão sobre o veto e a adesão.

 A atribuição da faculdade de veto às potências aliadas e à República Popular da China reflete a dinâmica de poder do mundo de 1945. O exercício da sua liberdade de veto configura uma prática que é alvo de forte contestação pela comunidade internacional pois um restrito número de Estados exercem uma influência desproporcional sobre matérias que afetam Estados que não têm lugar na mesa de negociações. A atribuição desta faculdade confere aos cinco estados o poder coercivo que os capacita de impedir unilateralmente qualquer ação que o Estado não reconheça como benéfica de acordo com a sua doutrina de política externa, sem que para tal submetam eles próprios modelos e propostas alternativas.

A seleção dos membros integrantes do P5 não está em consonância com a realidade geopolítica do século XXI, especialmente se for tida em consideração o aparecimento de novos atores de natureza não estatal cujo horizonte de ação afeta transversalmente o atlas . O estatuto e modus operandi dos P5 foi imune à passagem do tempo e não sofreu qualquer atualização que permitisse ajustar a estrutura e distribuição de poder em 1945 à conjuntura de 2023.

A ausência de representação de unidades geopolíticas da América Latina, África e Médio Oriente não é de somenos e propicia a que estes países, por sentirem que a organização está desligada da realidade, considerem que esta padece de uma lacuna de legitimidade e de autoridade.

Países com colossal influência à escala global reivindicam a sua presença num espaço de tamanha importância quanto o Conselho de Segurança, entre os quais o Japão, a Índia e o Brasil, fortes candidatos à inclusão, em caso de alargamento do número de membros permanentes. A sua integração não só refletiria a reconfiguração da distribuição de poder mundial bem como preencheria a lacuna de representação de algumas latitudes.

A reflexão em torno da imperatividade de uma reforma é remota e são diversas as ideias que sobreviveram à passagem do tempo. No que ao direito de veto diz respeito, as propostas oscilam entre a defesa da sua eliminação (que presumivelmente culminaria na inexorável saída da Organização de membros do P5), a atribuição do estatuto  de membros permanentes do Conselho de Segurança sem o direito ao veto e o seu alargamento a potências que por razões de natureza económica (Japão e Alemanha) ou demográfica (Índia) possuem um papel de maior relevância e influência no xadrez político mundial.

Embora possua um desempenho notável em domínios como a promoção dos direitos humanos, mediação de conflitos, combate ao terrorismo e missões de peace-keeping a inexistência de uma autoridade coerciva dotada de hard-power torna a efetivização do caráter impositivo das suas normas difícil.

A 16 de março de 2022 o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ordenou a imediata suspensão das operações militares na Ucrânia – diretriz cuja aceitação e execução é mandatória. Qualquer país membro da ONU encontra-se abrangido pela jurisdição da TIJ, no entanto os Estados munidos de direito de veto no Conselho de Segurança podem opôr-se às decisões do Tribunal de Haia – decisão que a Rússia não hesitou em tomar. Sumarizando, a organização idealizada para a prevenção de conflitos é  hoje um dos maiores promotores do seu agravamento. Este caso demonstra que quando a ação dos Estados é movida pela pulsão do poder, o livre arbítrio e o desrespeito pelo multilateralismo sobrepõe-se às normas que emanam das convenções e tratados, colocando a nu as limitações do Direito Internacional.

O idealismo prosaico não pode colocar o realismo na gaveta – fazê-lo é obliterar a força motriz que norteia a ação dos Estados : o poder.

A subordinação dos interesses globais à prossecução de interesses individuais de curto prazo através da liberdade de veto é uma prática remota. São exemplos de polarização e de instrumentalização do veto momentos como a guerra da Coreia, a crise em Cuba, a crise do canal do Suez – períodos marcados pela confrontação entre os Estados Unidos da América e a União Soviética.

O dia 24 de fevereiro de 2022 acelerou o processo de consciencialização da imperatividade da realização de reformas. O veto de um membro permanente a uma resolução que denuncia a invasão configura uma clara violação dos princípios emanados da Carta das Nações Unidas, e é revelador do anacronismo da estrutura da organização. A prossecução de um roteiro em direção à paz apenas pode ser trilhado através do respeito pelas normas emanadas da Carta das Nações Unidas.

A arquitetura institucional do Conselho de Segurança parece ter sido desenhada para gerar situações de impasse. Embora se multipliquem ano após ano as propostas de redefinição da estrutura do Conselho de Segurança, que oscilam entre um grau de maior ambição ou maior moderação, a alteração do paradigma vigente está integralmente dependente da votação dos P5. O futuro da ONU está agrilhoado àqueles que há sete décadas impulsionaram a sua criação.

Este é o retrato da des(ordem) global em curso. Um mundo repleto de incertezas decorrentes do regresso vigoroso da competição geoestratégica, num cenário moldado por Estados cuja ação se insere num plano de procura incessante de maximizar os seus próprios interesses, o futuro afigura-se no mínimo inquietante.

A atual conjuntura está longe de refletir os desígnios partilhados pelos “founding fathers” da organização. Segundo Harry Truman, presidente dos Estados Unidos da América entre 1945 e 1953, as Nações Unidas são um organismo cuja estrutura se deve alterar consoante os desafios que a contemporaneidade impõe.

A alternativa à inércia é a perda de prestígio face a organismos como o G7, G20, NATO e BRICS que primam pela convergência de interesses, antagónica à permanente tensão e fragmentação das Nações Unidas.

Somente através da prossecução de alterações profundas na sua orgânica, que vão além do direito de veto, que incluam também a reestruturação dos elos que unem os diferentes órgãos da Organização, poderá ser possível que a instituição esteja ao serviço dos propósitos que motivaram a sua conceção e que se encontram sumariamente consagrados no artigo 1º da Carta das Nações Unidas – “manter a paz e a segurança internacionais e para esse fim: tomar medidas coletivas eficazes para prevenir e afastar ameaças à paz”.

A ONU é débil, possui avanços, recuos, ziguezagues e incongruências porém é imperativo que tenhamos em consideração o conjunto de alternativas de que dispomos.

 Volvidas sete décadas de existência é inquestionável o leque de conquistas e avanços alavancados pela defesa de uma matriz humanista e de uma grelha inegociável de valores.

O problema reside na orfandade de protagonistas que defendam vigorosamente o multilateralismo como arquitetura de poder mundial. Ter a nobre missão da ONU no centro da rosa dos ventos é imperativo para que a nossa bússola de ação não perca o norte.

Na ótica de poder, as Nações Unidas configuram um espaço de afirmação e ampla projeção dos nossos interesses e aumentam o potencial estatal em mesas de negociações cujo desempenho suplanta os limites das suas fronteiras. Somente países virados para o exterior e aliados a esforços europeus, americanos, transatlânticos, asiáticos, africanos, do Médio Oriente e Oceânia conseguem preparar o seu futuro

 A diplomacia não se pode resumir a uma mera proclamação de princípios. Como relembrado pelo Presidente da República Portuguesa no seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas: “Ano após ano nós prometemos. É tempo de cumprir”. Discursos são vazios de valor se a si não estiver associada o ímpeto da ação e subordinada à ambição de prossecução de objetivos profícuos ao futuro coletivo.

São múltiplas as propostas que se concebem como alternativas à vigente arquitetura de poder mundial, no entanto, uma ordem internacional de natureza cíclica e imprevisível, descrita eximiamente por Robert Kagan na sua obra “A jungle grows back” está longe de ser uma alternativa sensata.

Uma ordem internacional marcada pela fragilidade, imprevisibilidade e sem um horizonte moral comum que norteie as lideranças mundiais é um passo dado na direção do trilho que, imbuídos de uma aura de ingenuidade, percorremos no século XX.

 

Embora em História o estabelecimento de paralelismos entre o passado e o presente pequem por relegar as vicissitudes da conjuntura, não significa que a memória não faça falta. Já é tempo de perceber esta evidência.

 

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Natacha Pernas. Natural de Almada, 20 anos, Estudante de Ciência Política e Relações Internacionais no

  Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

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