O Sharp Power – Uma nova ferramenta da política internacional

 As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.

Introdução

Em 2017, Christopher Walker e Jessica Ludwig publicam um artigo na Foreign Affairs, trazendo para debate um novo conceito que vem revolucionar as Relações Internacionais e alterar a dicotomia entre o Hard e o Soft Power trazida por Joseph Nye na segunda metade do século XX – o Sharp Power.


Adaptado às novas realidades e à nova convivência entre regimes democráticos e regimes autoritários que o século XXI nos trouxe, Walker e Ludwig desenvolvem este novo conceito em torno da capacidade destes últimos em conservar os seus próprios interesses, minando as instituições dos Estados democráticos.

Neste sentido, no presente artigo, será alvo de análise o conceito de Sharp Power, assim como as formas que este pode assumir no atual contexto internacional. Deste modo, pretende-se responder à seguinte questão: O que é o Sharp Power e como é que este atua na política internacional?

Do Soft Power ao Sharp Power – Uma nova visão do poder

 

O conceito de Sharp Power é introduzido por Walker e Ludwig como evolução, mas também como rutura face ao Soft Power de Nye. A principal razão por detrás desta evolução/rutura encontra-se, por um lado, na crescente ambivalência do Soft Power, no sentido em que este passou a ser constantemente aplicado a todas e quaisquer formas “of influence that are not ‘hard’ in the sense of militar forces” (Walker & Ludwig, 2017) e, por outro, na nova realidade internacional trazida pelo pós Guerra Fria e o pelo debate entre as Democracias e os novos regimes híbridos.

 

Este tema é desenvolvido por Walker e Ludwig (2017) face às novas estratégias de autocracias (como a Rússia e a China) para se afirmarem e alargarem a sua projeção internacional, procurando expandir os princípios e valores que regem os seus regimes – “supress political pluralism and free expression to mantain power” –, de forma a conseguirem uma maior aceitação dos seus modelos.

Existem algumas diferenças desta nova ferramenta face ao Soft Power que, para Walker e Ludwig, trazem para debate um novo conceito, uma nova abordagem. Nas palavras de ambos os autores, enquanto o Soft Power se baseia numa capacidade de atração, seja ela cultural, económica ou política, o Sharp Power é uma estratégia que se baseia no poder de manipulação.

 

Desta forma, o Sharp Power pode ser descrito como uma nova “abordagem das relações internacionais que envolve tipicamente ações de censura ou o uso de manipulação para minar a integridade das instituições independentes”, e cujo principal instrumento é “limitar a liberdade de expressão e gerar distorções no ambiente político” (Walker, 2018, p. 49). Tal como afirma Walker (2018), o grande objetivo do Sharp Power é o de “comprometer a integridade de instituições independentes por meio de manipulação, como quando entidades chinesas, agindo em nome do partido-Estado comunista disfarçam suas atividades como sendo empreendimentos comerciais ou iniciativas da sociedade civil” (Walker, 2018, pp. 50-51).

 

O Sharp Power, segundo Walker (2018), pode assumir duas formas: a “distração”, que consiste na interferência e manipulação dos regimes democráticos; e a “censura”, filtrando informações ou notícias sensíveis para as autocracias (Walker, 2018, p. 51).

Aplicação prática deste novo poder das autocracias

 

O Sharp Power é uma ferramenta à disposição das autocracias, que procuram transpor para a cena internacional os mesmos valores que vigoram internamente e que são uma forma de garantir o controlo da população e a manutenção do poder. Desta forma, estes regimes conseguem minar os Estados democráticos, afetando, por conseguinte, a sua eficácia em impor os seus princípios e ideias e, ademais, a sua capacidade de contestação face às autocracias e ao seu desrespeito pelas normas da sociedade internacional.

 

As principais portas de entrada do Sharp Power nas democracias são, como assume Walker (2018), “as esferas da cultura, academia e os setores editorial e de imprensa”, dado serem setores “abertos e acessíveis”, tornando-os “alvos fáceis para a penetração do sharp power” (Walker, 2018, p. 52). Através destes setores, regimes como os da República Popular da China (RPC) e da Rússia procuram “exercer o controle de importantes esferas informacionais e das ferramentas de disseminação de pensamentos, imagens e ideias” (Walker, 2018, p. 57).

           

  1. O Sharp Power da RPC

A utilização do Sharp Power pela China Popular assume-se como uma tentativa “to shape public opinion and perceptions around the World” (Walker & Ludwig, 2017), sendo principalmente visível através da ação dos Institutos Confúcio – espalhados por todo o globo e associados às mais variadas e prestigiadas instituições académicas internacionais.

 

Apresentado pelo Estado Chinês como um instituto “cultural e acadêmico” (Walker, 2018, p. 52) – atuando de forma similar ao Instituto Camões ou à Alliance Française – e camuflando-se, à primeira vista, como uma forma de soft power (poder de atração), os Institutos Confúcio escondem, na realidade, outras intenções, tal é a falta de independência e transparência destes organismos (Walker & Ludwig, 2017).

 

Neste sentido, Walker (2018) classifica-os como “células do PCC nos campi universitários” das Democracias, e que têm por missão “impedir essas universidades de realizar discussões sobre temas sensíveis à China como Taiwan e Tibete” (Walker, 2018, p. 52).

 

Mas não é só através destes institutos que a RPC consegue minar os regimes democráticos. Um outro caso impactante é o da rede de televisão australiana ABC que, em 2014, “anunciou um acordo milionário com o Shanghai Media Group, um conglomerado financiado pela República Popular da China” (Walker, 2018, p.45). Apesar das oportunidades que poderia abrir, este acordo “se por um lado parecia dar à imprensa de ao menos uma democracia consolidada uma porta de entrada a um sistema autocrático, por outro comprometia gravemente a integridade jornalística da rede de televisão pública australiana” (Walker, 2018, p.45), dado que, como condição, a ABC comprometera-se a eliminar “todo o conteúdo noticioso e de atualidades desagradáveis a Pequim” dos seus canais. Neste sentido, como aponta Walker (2018), já não é a primeira vez que a China utiliza o Sharp Power como ferramenta para “infiltrar e erodir” (Walker, 2018, p. 46) a democracia australiana.

          2. O Sharp Power e a Rússia

 

No respeitante ao Sharp Power russo, este assume a forma de manipulação eleitoral e “interferência (…) em eleições estrangeiras” (Walker, 2018, p.50), procurando, desta forma, “manipular o debate público” (Walker, 2018, p.51), explorando os “conflitos existentes nessas sociedades para aumentar a polarização e enfraquecer a civilidade democrática e o consenso” (Walker, 2018, p.50), levando a “tensões dentro e entre democracias” (Walker, 2018, p.51).

 

Em 2016, logo no rescaldo das eleições americanas, começaram a surgir as primeiras notícias da interferência russa que teria garantido a vitória de Trump, que não se opunha tanto a Putin como a sua adversária, Hillary Clinton. Em 2020, quatro anos depois, o Senado americano concluiu que esta interferência teria realmente ocorrido no ato eleitoral (DN/Lusa, 2020).

 

Por outro lado, a Rússia também tem procurado tirar partido da informação para moldar o pensamento dentro das democracias e para minar as suas instituições. Tanto a Rússia como a China conseguem controlar as notícias e os media internamente, controlando o que o seu povo ouve e sabe, e procuram fazê-lo também externamente, censurando debates que não lhes sejam favoráveis. Por outro lado, a nova realidade tecnológica veio permitir, tanto à Rússia como à RPC, utilizar as “ferramentas online” para, internamente, censurar o que o seu povo “é capaz de acessar quando estão online” e, externamente, pressionando grandes empresas a remover conteúdos sensíveis (Walker, 2018, p. 57).

O perigo do Sharp Power

 

Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, são só alguns dos alvos do Sharp Power chinês e russo, corrompendo as instituições e os valores democráticos. Enquanto os regimes autocráticos como a China e a Rússia apresentam condições que lhes possibilitam, ao contrário dos regimes democráticos, exercer o Sharp Power, as democracias demonstraram-se bastantes frágeis a esta nova forma de penetração, levando a uma tendência em que as ideias autoritários se começam a tentar impor.

 

Certos fatores garantem o sucesso das autocracias em usar, ao seu bel-prazer, o Sharp Power. Primeiramente, aquilo “que Larry Diamond chamou de ‘recessão democrática’”, ou seja, a atual tendência de “declínio democrático” (Walker, 2018, p.47) que se tem verificado no Ocidente, dadas as crescentes ameaças aos valores democráticos. Por outro lado, a Globalização e a “abertura, dos sistemas democráticos”, a par que, do lado das autocracias, surgem novas “ferramentas e táticas (…) para revitalizar a censura” e que lhes permitem “insular seus próprios sistemas das influências políticas e culturais externas” (Walker, 2018, p.57). E, finalmente, a própria dinâmica dos regimes e sistemas económicos de países como a Rússia e a RPC que, caracterizados pelo seu hibridismo, permite-lhes um largo controlo sobre as suas empresas e os investimentos destas, facilitando a “que os autocratas [desses países] se infiltrem no comércio e nas economias das principais democracias” (Walker, 2018, p.48), minando-as desde o seu interior.

Conclusão

 

O Sharp Power surge como um conceito inovador e essencial para percebermos as novas dinâmicas da política internacional. Acaba por ser uma nova ferramenta à disposição dos Estados Autoritários para se conseguirem impor, minando as democracias e os seus valores e princípios e, assim, afetar a contestação que estes fazem sobre Estados como a Rússia e a China.

Flávio Bastos da Silva
Mestrando em Relações Internacionais

Universidade Lusíada do Porto

&

João Barbosa Moreira
Mestrando em Relações Internacionais

Universidade Lusíada do Porto

Bibliografia

DN/Lusa. (2020, 18 de agosto). Senado dos EUA conclui que Rússia interferiu nas presidenciais de 2016. DN. https://www.dn.pt/mundo/senado-dos-eua-conclui-que-russia-interferiu-nas-presidenciais-de-2016-12533346.html

 

Walker, C., & Ludwig, J. (2017, 16 de novembro). The Meaning of Sharp Power – How Authoritarian States Project Influence. Foreign Affairs. Retrieved from https://www.foreignaffairs.com/articles/china/2017-11-16/meaning-sharp-power

 

 

Walker, C. (2018). O que é ‘sharp power’ e como ele perfura as instituições democráticas. Journal of Democracy em Português, 29(3), 45-68. http://www.plataformademocratica.org/Arquivos/JD-v7_n2_03_O_que_e_sharp_power_e_como_ele_perfura_as_instituicoes_democraticas.pdf