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O conceito de poder cai numa irreconciliabilidade teórica que emana dos diversos pressupostos ontológicos e culmina numa divergência epistemológica. Não deixa, no entanto, de ser considerado central no estudo das Relações Internacionais. A forma mainstream de olhar para o conceito de poder – não apenas em Relações Internacionais – é como uma relação causal coerciva em que o “eu” provoca no “outro” um comportamento que este não efetuaria sem aquele (Han, 2017; Barnett & Duvall, 2005). No entanto, esta definição está longe de conseguir captar toda a complexidade inerente ao conceito de poder, promovendo uma limitação à análise do comportamento dos atores internacionais e das relações que estes estabelecem entre si.
É com base nesta definição simplista de poder que as principais escolas teóricas de Relações Internacionais se desenvolvem, sendo a escola realista – concretamente, a vertente neorrealista – a que mais se destaca devido ao aspeto nuclear do conceito no seu seio disciplinar.
No capítulo A realist theory of international politics, Morgenthau (2014) identifica os seis princípios do realismo político (i.e. realismo clássico) e destaca como princípio basilar da teoria realista o interesse definido em termos de poder, sendo este o exercício da razão sobre a política internacional, que acaba por autonomizar a esfera política. Este interesse deve ser definido como “interesse nacional” (Morgenthau, 2014). O interesse definido em termos de poder é a ligação entre o exercício da razão na tentativa de analisar a política internacional e os factos políticos. É reconhecer os atores políticos e as suas ações como racionais na conquista do interesse nacional através da minimização dos riscos e maximização dos benefícios. Este exercício trata a política como uma esfera autónoma e ressalva a prudência política nas tomadas de decisão, tendo o poder nacional como bem último (Morgenthau, 1948, 2014). Esta lógica, para Morgenthau (1948, 2014), evitaria a inclinação que as nações têm para se tornarem hegemónicas e implementarem os seus modelos políticos a nível universal e vai de encontro a outro dos seis princípios do realismo político: todas as entidades políticas têm o seu interesse próprio definido em termos de poder, pelo que no entendimento do seu interesse a nação deve respeitar os interesses das nações alheias (Morgenthau, 1948, 2014). A interpretação deste ponto conduz à conclusão de que Morgenthau (1948, 2014) defende um sistema de equilíbrio de poder, onde todas as nações têm espaço para explorar os seus interesses, mesmo que em permanente competição.
Um dos contrapontos para a lógica de poder enquanto interesse nacional surge dentro da própria escola realista, através da vertente neorrealista. Em Realist Thought and Neorealist Theory, Kenneth Waltz (1990) rompe com a análise de lógica de poder realizada por Morgenthau (1948 & 2014) afirmando que o poder não é um fim em si mesmo, nem o objetivo último determinado pelo desejo e natureza humana, mas um meio para garantir a sobrevivência dos Estados. A sua distribuição entre “unidades similares” é uma característica da estrutura internacional, que afeta o comportamento das mesmas, fazendo com que as suas capacidades sejam aquilo que as distingue (Waltz, 1990).
Não se pretende aqui fazer uma análise comparativa entre as duas vertentes da escola realista, até porque tal exercício já foi efetuado por Ricardo Neves (2020), em Uma Genealogia da Teoria Realista. Porém, considera-se relevante verificar como cada uma propõe uma visão diferente de lógica de poder, sobretudo quando parece que o conceito de poder tem uma interligação genealógica e disciplinar com a escola realista, moldando a interpretação do conceito em Relações Internacionais. Consequentemente, grande parte dos textos na disciplina conceptualizam a seguinte formulação de poder: a capacidade de um Estado de utilizar os seus recursos materiais para que um outro Estado faça algo que não queira fazer (Barnett & Duvall, 2005). Inerente a esta definição encontram-se pressupostos que vão além da relação social e causal de coerção, tais como o facto de o poder do “eu” restringir a liberdade do “outro” (Han, 2017) e a assunção de que o “eu” e o “outro” se comportam de forma antagónica (Han, 2017).
Os neoliberais, sobretudo através da figura de Keohane (1984), argumentam que os Estados com interesses convergentes e através de uma escolha social criam instituições internacionais como forma de domar ou mitigar o poder desses mesmos Estados (Barnett & Duvall, 2005). Contudo, se a escola liberal – e a sua vertente neoliberal – não se distanciasse do desenvolvimento da conceptualização de poder devido ao seu desejo compulsivo de se afirmar como teoria rival ao realismo e não perdesse tempo numa busca incomensurável e desmedida por um antídoto à aplicação da lógica de poder em Relações Internacionais, encontraria nos pressupostos supramencionados problemas que vão de encontro a questões relacionadas com os valores liberais e com o pressuposto de interdependência complexa, por exemplo.
Ora, analise-se o poder como forma de restringir a liberdade do “outro” e a assunção de que o “eu” e “outro” se comportam de forma antagónica. Quando estes pontos são colocados em cima da mesa, associada aos mesmos surge a possibilidade do uso de violência física a qualquer instante de forma a compelir o antagonista. Esta é uma pintura hostil que possibilita o florescimento do poder enquanto força coerciva; no entanto, não é o único contexto onde existem dinâmicas de poder.
Se ao contrário de um comportamento antagónico, existir um comportamento de cooperação, as manifestações de poder não deixam de existir, apenas se complexificam e, possivelmente, intensificam – a possibilidade de recorrer ao uso da violência torna-se num horizonte distante como resultado de uma interdependência complexa entre os atores. Segundo Han (2017), “o poder que não opera contra o projeto de ação do outro, mas a partir dele, contém um grau de intermediação muito maior. Um poder superior é um poder que configura o futuro do outro e não um poder que o bloqueia.”
Esta lógica de poder não procura apenas uma determinada ação, mas que o “outro” queira, voluntariamente, cumprir a vontade do “eu”, influindo sobre o meio que rodeia a ação em vez de diretamente sobre a mesma. Esta é a lógica propagada pelas grandes potências da Ordem Liberal quando procuram alastrar os valores liberais e elevam a democracia como forma máxima de governação, i.e., através da cooperação e da complexificação das suas relações fazerem vigorar a sua vontade aos restantes Estados e àqueles que à mesma procuram pertencer. Não significa este argumento que nunca se recorra à violência, apenas que existe uma escala de intermediação (Han, 2017) que varia consoante a lógica coerciva ou a lógica cooperativa, preferindo os países da Ordem Liberal uma lógica cooperativa de poder.
Mesmo com a fobia que os autores liberais sentem em referenciar o conceito de poder, este não está nunca desligado da realidade social, seja ela nacional ou internacional. Muito menos essa fobia deve servir para cobrir a lógica liberal como livre da operacionalização empírica de poder.
Carolina Correia
Mestranda em Ciência Política e Relações Internacionais
NOVA-FCSH
BibliograFia
Barnett, M., & Duvall, R. (2005). Power in International Politics. International Organization, 59(1), 39–75.
Elman, C., & Jensen, M. (2014). The Realism Reader. New York: Routledge.
Han, B. (2017). Sobre o Poder. Lisboa: Relógio D’Água Editores.
Keohane, R. O. (2005). After hegemony: Cooperation and discord in the world political economy. Princeton, N.J: Princeton University Press.
Morgenthau. (1948). Politics Among Nations. New York: Alfred A. Knopf.
Neves, R. (2020). Uma genealogia da teoria realista. ORBIS-International Relations Studies Association.
Waltz, K. N. (1990). REALIST THOUGHT AND NEOREALIST THEORY. Journal of International Affairs, 44(1), 21–37.