O construtivismo na teoria das Relações Internacionais

Desde o final da década de 80, o construtivismo tem-se afirmado como uma das principais abordagens teóricas das relações internacionais, reunindo contributos da sociologia, filosofia e psicologia social. Dada a sua heterogeneidade interna, tomá-lo-ei num sentido restrito como construtivismo moderno ou sistémico por ser a abordagem mais utilizada, deixando de lado as outras classificadas como construtivistas num sentido amplo, por exemplo, o construtivismo crítico, o radical e o linguista moderno (Adler, 2013).

É fundamental perceber que o construtivismo não é uma teoria sobre a ‘substância’ das relações internacionais como o neorrealismo, por exemplo, uma vez que não faz afirmações relativas às propriedades dos agentes nem ao conteúdo de estruturas – “it offers a framework for thinking about the nature of social life and social interaction, but makes no claims about their specific content(Finnemore and Sikkink, 2001). Por outras palavras, o construtivismo não nos diz especificamente como é o mundo, fornecendo, sim, um quadro de análise ou uma meta-teoria para refletir sobre ele (Wendt, 1987).

Ademais, o construtivismo é uma abordagem idealista e holista (Wendt, 1999). O idealismo contrapõe-se ao materialismo, que considera que a realidade é determinada somente por fatores materiais. Por outro lado, o idealismo acredita que a realidade é primariamente determinada por fatores ideacionais (distribuição de ideias ou conhecimento), o que não nega um papel aos fatores materiais, mas considera-os secundários ou então relevantes quando são revestidos de significados ou ideias pelos agentes (Wendt, 1999). Por exemplo, as capacidades materiais dos EUA têm um significado para o Canadá e outro distinto para Cuba – os agentes agem com base no significado que os objetos têm para eles (Weber, 2019).

O construtivismo é também holista, opondo-se a uma abordagem individualista que explica a realidade pelas propriedades ou interações de agentes individuais. Para esta abordagem, os agentes são independentes e atomizados, agindo com base em fatores inatos e individuais. Por outro lado, o holismo concebe a existência de estruturas sociais pelo menos parcialmente independentes dos agentes com um estatuto ontológico de objetividade/realidade, que têm efeitos sobre eles, constrangendo-os e, por vezes, constituindo-os (Wendt, 1999)

Passando, então, à teoria per se, a orientação holista do construtivismo leva-nos para o seu primeiro postulado: a relação agente-estrutura é mutuamente constitutiva. A estrutura é concebida como a distribuição do conhecimento, que são ideias (privadas, comuns ou coletivas) às quais os agentes atribuem veracidade (Wendt, 1999). Em particular, os construtivistas focam-se no conhecimento intersubjetivo, que diz respeito a ideias coletivamente partilhadas e aos padrões de comportamento a que elas dão origem (Wendt, 1999). Estas confrontam os agentes como ‘factos sociais’ externos, reais/objetivos e coercivos (Durkheim, 1998), tomando a forma de normas, regras, instituições, ideologias, entre outros. As estruturas de conhecimento intersubjetivo não são reduzíveis aos agentes, tendo um estatuto ontológico próprio e parcialmente independente deles; os agentes podem ter um conhecimento parcial ou errado (ou até desconhecimento) delas e o seu efeito ser observável. Os efeitos da estrutura nos agentes podem ser de natureza causal, de natureza constitutiva, ou de ambos (Wendt, 1999). Numa relação causal, as entidades são tidas como independentes e uma condição X prévia gera um efeito Y posterior. Numa relação constitutiva, Y é o que é em virtude da sua relação com X (Wendt, 1999).

No entanto, “structures are only produced and reproduced by practices and interaction(Wendt, 1999). São as práticas dos agentes e a sua interação que criam e transformam a estrutura, sendo que a sua existência depende dos efeitos que tem nos agentes e no reconhecimento subjetivo por parte deles das regras, normas, inter alia, que a compõem (Wendt, 1987). Resumindo:

agents and structures as mutually constitutive yet ontologically distinct entities. […] they are “co-determined.” Social structures are the result of the intended and unintended consequences of human action, just as those actions presuppose or are mediated by an irreducible structural context(Wendt, 1987).

Assim, o segundo postulado do construtivismo é que, pelo menos parcialmente, os agentes atuam segundo uma lógica de adequação, e não só de acordo com uma lógica consequencialista de custo-benefício. Reduzirmo-nos à última seria ignorar a força dos factos sociais e esquecer que os interesses dos agentes são endógenos e mutáveis, sendo também eles muitas vezes produtos do efeito constitutivo da estrutura (March and Olsen, 1998; Wendt, 1999). Na lógica de adequação, a ação individual implica a encarnação de uma identidade ou papel social e o cumprimento das obrigações associado a ela/ele numa determinada situação social – “political actors as acting in accordance with rules and practices that are socially constructed, publicly known, anticipated, and accepted(March and Olsen, 1998). Sublinhando que não são mutuamente exclusivas, a lógica de adequação, ainda que parcial, é inerente a qualquer estudo construtivista. 

No entanto, os agentes não são marionetas passivas da estrutura – têm reflexividade e capacidade de agência parcialmente independente da mesma. Isto leva-nos para o terceiro postulado: “identities are the most proximate causes of choices, preferences, and action(Hopf, 1998), não negligenciando a estrutura com a qual estão, aliás, relacionadas. A identidade diz ao agente quem ele é, sendo um fenómeno subjetivo, mas os entendimentos sobre o próprio dependem do reconhecimento dos outros, tendo também um elemento intersubjetivo (Wendt, 1999). O agente A pode achar que é professor, mas se os alunos não o reconhecerem enquanto tal, a sua interação não funcionará e a sua identidade como professor não se fixará (ibidem). Este exemplo revela o caráter inerentemente social da identidade, sendo “definida, em termos objetivos, como localização num certo mundo e só pode ser apropriada ao nível subjetivo em conjunto com este mundo” (Berger and Luckmann, 2010). Voltando ao exemplo anterior, a identidade de professor do agente A deriva da sua posição social na instituição ‘escola’, ou seja, por referência à estrutura social na qual participa (efeito constitutivo). Todavia, podemos imaginar que o agente A se identifique simultaneamente como cidadão português, pai, entre outros. 

Os agentes têm várias identidades com formas e funções distintas, que são ativadas, na maioria, por situações sociais específicas, sendo evidente que algumas são mais salientes na auto-identificação do agente do que outras (Wendt, 1999). Apesar da discussão em torno da identidade estar longe de encerrada, sabemos que elas implicam interesses que, por sua vez, motivam ações, logo são uma variável fundamental na pesquisa construtivista. Saliento ainda a importância dos fatores internos na construção da identidade do agente (Hopf, 1998) – uma teoria da identidade dos Estados não estaria completa sem uma componente interna (Wendt, 1999).

Vejamos, agora, que tipo de problemas dirigem a pesquisa construtivista. Dado o pressuposto ontológico de que os agentes são influenciados pelo contexto social em que agem, os construtivistas tendem a questionar como é que isto acontece e que resultados é que tem (Finnemore and Sikkink, 2001). Por exemplo, o estudo de Risse et al (1999) mostra como normas internacionais de direitos humanos provocaram alterações de comportamento a este respeito no nível interno de alguns Estados. Por outro lado, os construtivistas também procuram compreender os mecanismos e processos de construção os factos sociais que compõem a estrutura social, tarefa essencial para compreender o seu efeito posterior nos agentes (Finnemore and Sikkink, 2001). A título de exemplo, o contributo de Finnemore e Sikkink (1998) explica como as normas se formam, difundem e coagem os agentes. Alguns subcampos de estudo férteis (além das normas) têm sido a análise das identidades, interesses e ação social (Katzenstein, 1996) e o estudo das organizações internacionais (Barnett and Finnemore, 1999; Checkel, 2005), entre outros.

A nível metodológico, não há um único research design, mas terá sempre uma dimensão interpretativa para conseguir capturar os significados intersubjetivos subjacentes a qualquer fenómeno social (Finnemore and Sikkink, 2001). Mesmo quando a orientação é explicativa (por exemplo, explicando os efeitos da norma no comportamento do agente), implicará sempre a compreensão do contexto intersubjetivo em que o agente opera, uma vez que o construtivismo não pressupõe o seu conteúdo. Há, por esta razão, uma tendência pós-positivista (Adler, 2013). Alguns métodos como análise de conteúdo, análise discursiva, estudos de caso e process tracing são muito utilizados para decifrar e medir estes significados, oferecendo evidências empíricas tão válidas quanto as das abordagens materialistas e quantitativas. No entanto os construtivistas usam uma variedade de métodos – qualitativos, quantitativos, positivistas, pós-positivistas e combinações (Adler, 2013) –, dependendo do problema de investigação.

Diogo Machado
Aluno de Licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais

NOVA-FCSH

Leituras posteriores

Adler, E. (2013) ‘Constructivism in International Relations: Sources, Contributions, and Debates’, in Carlsnaes, W., Risse, T., and Simmons, B. (eds) Handbook of International Relations. London: SAGE Publications Ltd, pp. 112–144. Excelente primeira leitura para familiarização com a teoria. Ilumina a evolução do construtivismo, divisões internas, pressupostos ontológicos, metodológicos e epistemológicos, contribuições empíricas e áreas de estudo.


Hopf, T. (1998) ‘The Promise of Constructivism in International Relations Theory’, International Security, 23(1), pp. 171–200. Artigo que resume competentemente as principais caraterísticas da teoria e apresenta alguns debates internos como crítico/convencional, sistémico/interno.


Finnemore, M. and Sikkink, K. (2001) ‘TAKING STOCK: The Constructivist Research Program in International Relations and Comparative Politics’, Annual Review of Political Science, 4(1), pp. 391–416. Para perceber os caminhos de pesquisa empírica do construtivismo.


Wendt, A. (1999) Social Theory of International Politics. Cambridge: Cambridge University. Leitura avançada, mas fundamental, assumindo-se como a ‘bíblia’ do construtivismo moderno.


Berger, P. and Luckmann, T. (2010) A Construção Social da Realidade. Lisboa: Dinalivro. Livro seminal da sociologia, mas que é muito útil para compreender a cosmovisão da teoria.


Finnemore, Martha, and Kathryn Sikkink (1998). ‘International Norm Dynamics and Political Change’. International Organization, 52 (4), pp. 887–917. Contributo seminal sobre a origem e difusão de normas, que foi o ‘pontapé de saída’ para o desenvolvimento deste relevante subcampo de pesquisa.

referências

Adler, E. (2013) ‘Constructivism in International Relations: Sources, Contributions, and Debates’, in Carlsnaes, W., Risse, T., and Simmons, B. (eds) Handbook of International Relations. London: SAGE Publications Ltd, pp. 112–144.

Berger, P. and Luckmann, T. (2010) A Construção Social da Realidade. Lisboa: Dinalivro.

Durkheim, É. (1998) As Regras do Método Sociológico. Queluz de Baixo: Editorial Presença.

Finnemore, M. and Sikkink, K. (2001) ‘TAKING STOCK: The Constructivist Research Program in International Relations and Comparative Politics’, Annual Review of Political Science, 4(1), pp. 391–416. doi: 10.1146/annurev.polisci.4.1.391.

Hopf, T. (1998) ‘The Promise of Constructivism in International Relations Theory’, International Security, 23(1), pp. 171–200. doi: 10.2307/2539267.

March, J. G. and Olsen, J. P. (1998) ‘The Institutional Dynamics of International Political Orders’, International Organization, 52(4), pp. 943–969. doi: 10.1162/002081898550699.

Weber, M. (2019) Economy and Society: A New Translation. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.

Wendt, A. (1999) Social Theory of International Politics. Cambridge: Cambridge University Press. doi: 10.1017/CBO9780511612183.

Wendt, A. E. (1987) ‘The agent-structure problem in international relations theory’, International Organization, 41(3), pp. 335–370. doi: 10.1017/S002081830002751X