Novas Formas de Escravatura

 As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.

 

À primeira vista, o tema da escravidão parece um tópico que pertence intrinsecamente ao passado longínquo e distante. Do lado ocidental do globo, predominantemente falando, a vasta maioria dos indivíduos não olharia para a escravatura com um olhar completamente diferente àquele a que se habituou das aulas de história, dos documentários a que assistiu à frente do ecrã, dos artigos que leu na Internet, ou até mesmo do conhecimento oral passado de geração em geração entre os seus familiares, amigos e conhecidos. A título de exemplo, um estudo de 2019 do Washington Post com inquiridos americanos revela que a maioria dos americanos desconhece a história da escravidão, no entanto, a maioria revela entender com certa profundidade os seus efeitos prolongados e nocivos nos dias de hoje (Guskin et al., 2019). Ora, isto prova que, para o típico ocidental, realmente a ideia de escravatura é uma noção inerte no tempo, embora um axioma de desumanização e perpetuação de danos aos direitos humanos. Assim sendo, o que pensar das novas formas de escravatura a que assistimos ainda no século XXI?

Pois bem, para destrinçar esta temática será bastante útil começar por enunciar as mais conhecidas novas formas de escravatura, a fim de afunilar noções e chegar a conclusões válidas com a análise efetuada ao longo do presente artigo. Desta forma, quando falamos de “novas formas de escravatura” estamos a referir-nos a fenómenos como o tráfico humano, o trabalho forçado, servidão por dívidas, escravatura por descendência, escravatura infantil, casamentos forçados e precoces, e servidão doméstica (Anti-Slavery International, 2022).

De acordo com a publicação elaborada pela Organização Internacional do Trabalho, Walk Free e a Organização Internacional para a Migração (International Labour Organization et al., 2022) estima-se que existem “50 milhões de pessoas em situação de escravatura moderna num determinado dia, forçadas a trabalhar contra a sua vontade ou num casamento a que são obrigadas.” (tradução livre). Ainda o mesmo artigo refere que destes 50 milhões, 12 milhões são crianças e que as mulheres, adultas e menores, são a fatia da população que mais sofre com a escravatura moderna e com especial proeminência nas regiões da Ásia e Pacífico, e prevalência  nos Estados do Médio Oriente (International Labour Organization et al., 2022).

Em termos dos tipos de trabalhos que cada género costuma desempenhar, analisa-se que enquanto os homens tendem a serem vítimas do setor da construção civil, as mulheres, por sua vez, fixam-se no trabalho doméstico (Euronews, 2022). De notar também que, de todas as vertentes de escravatura moderna aqui enunciados, em termos de trabalho, a exploração sexual representa mais de metade, sendo que, ao contrário do que se possa pensar, a maioria destas situações “ocorre em países com rendimentos médios e altos.” (Euronews, 2022).  

Assim, fica claro que, tal como implícito no início do presente artigo, mesmo que deste lado do planeta se pense na escravatura como um acontecimento distante tanto no tempo quanto no espaço, a verdade é que isso não corresponde à realidade. A fim de corroborar a presente afirmação, é particularmente relevante um dos casos mais recentes e mediáticos de escravatura moderna, a preparação e realização do mundial de futebol no Catar. Tal como foi reportado pela Amnistia Internacional (2019), a preparação do mundial do Catar foi marcado pelo abuso sucessivo de migrantes para a construção de estádios e infraestruturas em vista a chegada dos adeptos em 2022 para apoiar as suas respetivas seleções nacionais. De acordo com a mesma fonte, eram várias as condições impostas a estes trabalhadores diariamente, destacando-se as elevadas taxas de recrutamento impostas a estes trabalhadores que, para fugir à pobreza da sua terra natal, procuravam trabalho no estrangeiro, endividando-se e ficando presos ao trabalho precário que acabavam por conseguir no Catar (Amnistia Internacional, 2019). Para piorar, estes trabalhadores enfrentavam também condições de vida desumanas, com alojamentos absolutamente impróprios para habitação, falsas promessas por parte dos recrutadores, salários em atraso, falta de liberdade de deslocação, ameaças, trabalho forçado (Amnistia Internacional, 2019) e até a própria morte, como no caso de mais de 6500 migrantes (RTP, 2022).

 Como se vê, a escravatura não desapareceu, apenas evoluiu, tomando outras formas e feitios, alicerçando-se nas sociedades mais vulneráveis. Hoje, o que se entende por escravidão ganha então novas definições tendo em conta o facto que a escravatura já é ilegal há décadas e em certos países ocidentais, há séculos. Desta forma, pode definir-se como “todas as práticas e condições semelhantes à escravatura do velho mundo, como o trabalho forçado, o tráfico de seres humanos, a servidão por dívidas e certos vestígios da escravatura” (KARA, 2017). Apesar desta definição, certas escolas de pensamento tentam separar ainda esta nova definição (deixando-a mais ligada ao termo de escravatura moderna e não de escravatura per se) da definição pura e dura de escravatura, com contornos de dominação, violência e contexto cultural, apanágio de outras eras (KARA, 2017).

Por fim, seria de certa forma contraproducente apelar à atenção sobre este tópico e ao facto da escravatura moderna estar “à vista de todos”, apesar de não parecer, sem acentuar o facto que esta calamidade é uma realidade também em Portugal. Por isso mesmo, destaco dois artigos do passado recente, que só pela sua simples enunciação já seriam um enorme flagelo, não fosse a adição agravante de reportarem piorias nos casos de escravatura moderna no nosso país. Desta feita, de acordo com a Agência Lusa (2018), em Portugal existiam, em 2018, por volta de 26 mil escravos modernos. Já em 2023, esse número aumentou para os 39,6 mil em território nacional (Laranjeira, 2023). O caso mais mediático no nosso país será certamente o dos imigrantes de Odemira, onde grande parte desses trabalhadores vivem em condições absolutamente deploráveis e onde mesmo depois de anunciadas medidas do governo em 2021, não se denotou qualquer mudança positiva na condição de vida desta população (Renascença, 2022). Para piorar, as condições de bem estar mínimas na habitação e no trabalho, já escassas, tendem a piorar muito mais nos próximos anos com o aumento do fluxo imigratório. Estas pessoas, segundo reporta a SIC Notícias (2023) são inclusive atraídas para Portugal por conselhos de figuras dos média digitais, que incentivam à emigração para Portugal por ser, segundo os próprios, o país com maior facilidade de entrada para quem procura trabalho vindo desses países.

 

Assim e para concluir, as novas formas de escravatura são diversas e encontram-se num patamar de existência já contrastante daquilo que se entende por escravatura “convencional”, aquela ligada a períodos anteriores da história. Ainda assim, os números de  hoje indicam-nos que estes casos atingem níveis absolutamente alarmantes, existindo mais escravos hoje do que nunca (Grace Forrest – Fashion Revolution, 2018), alavancados igualmente pelo nosso modo de vida, sendo que “A escravidão moderna permeia todos os aspetos da nossa sociedade. Está presente nas nossas roupas, nos nossos aparelhos eletrónicos e tempera a nossa comida” (Grace Forrest – Agência Lusa, 2023). É, assim, um flagelo com tendências cada vez mais destrutivas e que jamais poderá ser ignorado. 

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 Agência Lusa. (2018, July 18). Existem 26 mil “escravos modernos” em Portugal. Observador. https://observador.pt/2018/07/19/existem-26-mil-escravos-modernos-em-portugal/

 Agência Lusa. (2023, May 24). Coreia do Norte e Eritreia são os países mais atingidos pela escravidão moderna. Expresso. https://expresso.pt/internacional/2023-05-24-Coreia-do-Norte-e-Eritreia-sao-os-paises-mais-atingidos-pela-escravidao-moderna-3fe542bb

Amnesty International. (2019). Qatar World Cup of Shame. Amnesty.org. https://www.amnesty.org/en/latest/campaigns/2016/03/qatar-world-cup-of-shame/

Anti-Slavery International. (2022). What Is Modern Slavery? Anti-Slavery International. https://www.antislavery.org/slavery-today/modern-slavery/

Euronews. (2022, December 2). OIT revela realidade da escravatura moderna no mundo. Euronews. https://pt.euronews.com/2022/12/02/oit-revela-realidade-da-escravatura-moderna-no-mundo

Fashion Revolution. (2018, November 29). Grace Forrest, Walk Free Foundation: Why we need an Australian Modern Slavery Act. Www.youtube.com. https://www.youtube.com/watch?v=LFsw2Rf9BBs

Guskin, E., Clement, S., & Heim, J. (2019). Americans show spotty knowledge about the history of slavery but acknowledge its enduring effects. Washington Post. https://www.washingtonpost.com/education/2019/08/28/americans-show-spotty-knowledge-about-history-slavery-acknowledge-its-enduring-effects/

International Labour Organization, Walk Free, & International Organization for Migration. (2022). Global Estimates of Modern Slavery Forced Labour and Forced Marriage. International Labour Office.

KARA, S. (2017). A Global Perspective. Columbia University Press; JSTOR. https://doi.org/10.7312/kara15846

Laranjeira, F. (2023, May 24). Portugal tem 39,6 mil pessoas em condições de escravatura moderna, aponta estudo. Fenómeno cresce a nível mundial – Executive Digest. Executive Digest. https://executivedigest.sapo.pt/noticias/portugal-tem-396-mil-pessoas-em-condicoes-de-escravatura-moderna-aponta-estudo-fenomeno-cresce-a-nivel-mundial/

Renascença. (2022, May 23). Imigrantes em Odemira. Um ano depois, pouco ou nada mudou – Renascença. Rádio Renascença. https://rr.sapo.pt/fotoreportagem/pais/2022/05/24/imigrantes-em-odemira-um-ano-depois-pouco-ou-nada-mudou/284847/

RTP. (2022, November 11). Catar. Mais de 6500 trabalhadores migrantes morreram enquanto se prepara Mundial de 2022. Catar. Mais de 6500 Trabalhadores Migrantes Morreram Enquanto Se Prepara Mundial de 2022. https://www.rtp.pt/noticias/mundo/catar-mais-de-6500-trabalhadores-migrantes-morreram-enquanto-se-prepara-mundial-de-2022_n1299512

 

SIC Notícias. (2023, May 20). Odemira: “influencers” migratórios aconselham Portugal para trabalhar. SIC Notícias. https://sicnoticias.pt/pais/2023-05-20-Odemira-influencers-migratorios-aconselham-Portugal-para-trabalhar-987e0e68

 

Samuel Caires. Natural do Funchal, 22 anos. Licenciado em RI pela Universidade de Évora, mestrado em RI e Estudos Europeus.

Áreas de interesse: política, geoestratégia e história. Foi embaixador júnior do Parlamento Europeu e membro do Núcleo de RI da Universidade de Évora.

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