Normative Power Europe? O Conceito e as suas Implicações na Identidade Internacional da UE

 As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.

A Invasão Russa da Ucrânia trouxe ao debate mediático novas preocupações em relação à forma como a União Europeia deve agir em relação à Guerra. Quase todas as opiniões, propostas e análises são precedidas com o ressalvar que a UE é um ator especial, focado não apenas nos seus interesses económicos e securitários – que a Invasão, de facto, põe em risco – mas na sua responsabilidade enquanto protetora e promotora da Democracia e dos Direitos Humanos. É tomado como pressuposto que a UE – sendo um ator internacional sem igual no Sistema Internacional, devido à sua natureza híbrida intergovernamental/supranacional – é ou deve agir enquanto um Poder Normativo. A questão que nos devemos colocar é, então, se a UE pode ser conceptualizada enquanto Poder Normativo? Mais até: o que significa a UE ser um Poder Normativo? Neste artigo/ensaio, procura-se dar uma visão holística de Normative Power Europe: os seus precursores na conceptualização da UE enquanto ator internacional, o conceito em si e as problemáticas que o conceito impele a investigar, principalmente naquilo que concerne à performatividade do conceito em relação à criação de uma identidade internacional para a UE – distinta da de outros atores e dos seus próprios Estados-Membro – que legitima – e guia – a ação internacional da UE além das suas fronteiras.

            1.     Os Precursores de Normative Power Europe

O conceito de Poder Normativo tende a ser visto vis-à-vis outros conceitos de poder; esta prática é particularmente útil porque contrasta o conceito com os demais, marcando assim de forma clara e intuitiva as suas diferenças. No caso do conceito de Poder Normativo aplicado à UE – Normative Power Europe (Manners I. , Normative Power Europe: A Contradiction in Terms?, 2002) – a comparação tende a ser com outras conceptualizações de UE enquanto ator internacional, algo sobre o qual a academia se tem debruçado desde os anos 70. Orbie (2008, p. 124) identifica Galtung, Duchêne e Bull como os “founding fathers’ of present day conceptualizations of Europe’s international role”, e são as suas conceptualizações da UE enquanto ator internacional – respetivamente a UE enquanto Superpotência Capitalista, UE enquanto Poder Civil e UE enquanto não-ator internacional – que dão o mote para o debate acerca do conceito de Normative Power Europe.

Para este debate, o conceito de longe mais importante é o de Civilian Power Europe de Duchêne. Maull (1990) define Poder Civil como tendo três características fundamentais: primeiro, a centralidade do Poder Económico – e dos seus instrumentos – para a persecução e defesa de interesses estratégicos; a diplomacia e a cooperação como centrais para a resolução de disputas e conflitos internacionais; vontade política para a promoção de organizações e instituições internacionais – como a ONU – para alcançar o “progresso mundial”. Não havendo grandes dúvidas de que a UE – ou, contemporâneo à escrita de Duchêne, as Comunidades Europeias – se encaixam nesta conceptualização, Bull (1982) critica-a por considerar que a ausência de poderio militar negaria, à partida, a actorness das Comunidades Europeias, dada a ineficácia e insuficiência do poder meramente económico; a afirmação de Bull (1982, p. 151) é clara: “‘Europe’ is not an actor in international affairs, and does not seem likely to become one”. O debate acerca da actorness da UE desenrolou-se, assim e durante muito tempo, entre aqueles – tendencialmente Liberais – que defendiam a UE enquanto um ator internacional cujo poder se baseava na sua capacidade económica e de influência internacional e aqueles – tendencialmente Realistas – que negavam, à partida, que a UE pudesse ser um ator internacional, ou porque “Poder Económico” não constitui poder sem a presença de poder militar. Podendo ser entendidos como diametralmente opostos, os conceitos de Duchêne e Bull partilham conceções semelhantes de Sistema e Ordem Internacionais, centrados no Estado-Nação enquanto ator central, na importância de poder físico direto – económico ou militar – com capacidade coerciva na persecução de interesses estratégicos, tendencialmente securitários, políticos ou económico-comerciais. Manners (2002), e o seu conceito de Normative Power Europe dão um passo em frente e abandonam estas conceções tradicionalistas. 

             2.  “Normative Power Europe” – o Conceito

 

Manners (2002), no seu artigo seminal “Normative Power Europe: A Contradiction in Terms”, descreve a UE enquanto um ator sui generis, único no Sistema e Ordem Internacionais, tendo-se transformado num Poder Normativo devido a três fatores fundamentais. O primeiro destes fatores é o contexto histórico em que o projeto de integração Europeu surge: depois da destruição causada pela Segunda Guerra Mundial – e ainda em choque com a extensão dos horrores perpetrados pelo Terceiro Reich –, o projeto Europeu nasce para preservar a paz, a prosperidade e a liberdade num contexto de cooperação entre os vários Estados Europeus – combatendo, desta forma, o surgimento de novos nacionalismos capazes de destruir a ainda periclitante paz Europeia. O segundo fator é a natureza híbrida da governança Europeia, conjugando elementos supranacionais e intergovernamentais; se todas as ações de política externa tomadas pela UE são o resultado de uma negociação entre os Estados-Membro – ou seja, entre atores internacionais de direito próprio, com interesses variados ou até mesmo divergentes – é expectável que exista uma ênfase acrescida nos “principles which are common to the Member-States(Manners I. , Normative Power Europe: A Contradiction in Terms?, 2002, p. 240). Por fim, o terceiro fator é a forma como o processo de integração Europeu decorreu: impulsionado pelas elites Europeias – que partilhavam os mesmos valores e mundividência –, o processo de integração foi – e é – baseado em tratados, o que fez com que os “valores Europeus” estivessem inscritos na ordem legal da UE, o que resulta que “its constitutional norms represent crucial constitutive factors determining its international identity”. Desta forma, segundo Manners (2002) – e reafirmado por Diez (2004; 2005) – a UE constitui-se enquanto um ator pós-moderno, que rompe com as normas de Vestefália tanto acerca da territorialidade do poder e da soberania, como da utilização e natureza desse poder. É importante, assim, definir os objetivos e, talvez mais crucial, os meios do Poder Normativo.

  

Os objetivos são de mais fácil apresentação; dizer que a EU é um Poder Normativo é dizer que esta define os seus interesses não em termos políticos ou económicos, mas sim de acordo com os seus valores: “the consolidation of democracy, rule of law, and respect for human rights and fundamental freedoms(Manners I. , Normative Power Europe: A Contradiction in Terms?, 2002, p. 241). Para além disso, “a normative power does not act in only its own interest but binds itself to international norms, whether they are in its interest or not(Diez, 2013, p. 197).

 

É, no entanto, a questão dos meios que diferencia a UE enquanto Poder Normativo de outros atores internacionais. Um Poder Normativo, argumenta Diez (2005, p. 616), “focuses on the independent power of norms to influence actors’ behaviour”, ou seja, o meio através do qual a UE difunde os seus valores na cena internacional são os valores em si próprios, a sua força, atratividade e legitimidade no exterior. Isto é particularmente importante porque podemos defender – embora este autor não o faça – que os EUA defendem interesses normativos – por exemplo, a democracia no Iraque ou a igualdade de género no Afeganistão – através de meios militares; no entanto, a utilização de meios militares – ou até de coerção económica – nega o poder normativo de um qualquer ator: a persecução de normas através do poder económico revela apenas que aquele ator é uma potência económica, não normativa.

 

Embora influente, o conceito de Normative Power Europe não está livre de críticas. A razão é óbvia: existem claros problemas com a verificação empírica tanto dos objetivos, como dos meios da UE enquanto “Poder Normativo”. Primeiro, porque é possível identificar vários momentos nos quais a UE ignorou o seu corolário normativo em nome do cumprimento dos seus interesses estratégicos – “interests are cloaked in a mantle of values and norms rhetoric” (Diez, 2005, p. 624). Segundo, a nível dos meios, (1) porque o poder das normas depende da proximidade verificada entre a UE e outros atores – e a sua aceitação a priori dos “valores Europeus” –, (2) porque a UE, de forma clara, utiliza o seu poder económico de forma coerciva e (3) porque é questionável a aceitação das normas da UE entre os seus próprios Estados-Membro – como o retrocesso democrático na Hungria e na Polónia são exemplo.

 

Estas questões, no entanto, só se afiguram como importantes se aceitarmos que a UE é de facto um Poder Normativo. Na leitura deste autor tal seria um erro.

         3. A Performance do Conceito e a construção da Identidade Internacional da UE – Problemáticas para Investigações Futuras

 

Seguindo a lógica de Manners (2002; 2006; 2010; 2015) e de Diez (2004; 2005; 2013), será mais interessante – e correto – analisar a ideia de Normative Power Europe enquanto representação da identidade internacional da UE; e, inspirando-nos na teoria Construtivista e no Pós-Estruturalismo, todas as representações de identidade são discursivamente construídas. Se é verdade que o conceito de Normative Power Europe é inerentemente académico e não político, não podemos descurar o poder que o discurso académico tem na construção – e legitimação – da identidade internacional da UE. Argumenta Milliken (1999, pp. 236-237) que “knowledge produced in the academy is fused with that of policy-makers to make up a ‘dominant intellectual/policy perspective´”; no caso da política externa da UE “researchers inevitably and mostly unintentionally create an ‘ideal power Europe’ meta-narrative which adds into the construction of European Identity)(Cebeci, 2012, p. 582). Ou seja, existe uma co-optação por parte dos atores internacionais do discurso académico para construir a sua identidade internacional e justificar a sua ação política. A relação simbiótica entre academia e burocracia Europeia é perfeitamente resumida por Cebeci: “EFPR [European Foreign Policy Research] feeds into the discourse of EU practitioners and the latter sometimes legitimise their acts or disguise their failure by using the former’s concepts. In turn, the new knowledge produced by EU practitioners is used by the researchers to prove and enhance their arguments.

 

Tal facto é particularmente saliente na UE por esta não ter uma identidade internacional a priori, já que não se trata de um Estado-Nação – resultante de processos históricos longos e sentimentos de pertença claros dentro de fronteiras – mas sim de um projeto de integração política continental que, desde os anos 70, se tem vindo a autonomizar e a ganhar actorness no Sistema e Ordem Internacionais. A isto, junta-se que a relação entre Política Externa e Identidade da UE é particularmente relevante porque, como revela Tonra (2011, pp. 1192-1193) “foreign policy has a crucial role in creating, reinforcing and challenging that identity just as it then proceeds to represent that identity externally (…) This defines the relationship between identity and foreign policy as being mutually constitutive”. O que nos traz, de novo, à ideia de Normative Power Europe, central na construção da identidade internacional da UE – tanto do ponto de vista académico como do político. Cebeci (2012, pp. 564) afirma, inclusive, que a forma através da qual investigadores construem a meta-narrativa de “ideal power Europe” é através dos “discourse on post-sovereign/postmodern EU, the EU-as-a-model discourse and the normative power EU discourse”, sendo que o conceito de Normative Power Europe se encaixa em cada uma destas práticas epistemológicas.

 

De que forma, então, é que o conceito de Normative Power Europe constrói a identidade Internacional e o que significa a UE referir-se a si própria enquanto Poder Normativo? Resumindo: de duas formas muito claras. Primeiro, e entendendo a construção de identidades como um processo discursivo de diferenciação – da construção da fronteira entre o “Eu” e o “Outro” (Neumann, 1996; Milliken, 1999; Diez, 1999; 2004) –, o conceito de Normative Power Europe pode ser entendido como uma representação discursiva da UE, baseada na oposição binária face a outros atores internacionais – por exemplo, a UE enquanto Poder Normativo vis-à-vis o Hard Power Americano ou a ameaça autocrática da Rússia. Assim, a UE representa-se enquanto um ator singular e, crucialmente, superior em relação aos outros; rompe com os padrões de Vestefália, procurando liderar o Sistema Internacional em direção à era Pós-Moderna. Segundo, porque dá um objetivo claro à Política Externa da UE: a de promover os “valores Europeus” no espaço não-UE; é esta “missão civilizadora” que legitima, através da ação, a identidade internacional da UE – sendo que a ação é, ela própria, legitimada e tornada lógica e aceitável pela identidade internacional da UE enquanto Poder Normativo.

 

As problemáticas suscitadas pelo conceito de Normative Power Europe são particularmente importantes no contexto atual, mais até do que quando o conceito foi criado no início do séc. XXI. A pergunta final – aquela que se deixa para debate para que outros possam responder em futuros textos – é como é que a UE vai conciliar a sua identidade internacional enquanto um Poder Normativo – uma representação construída ao longo de décadas – com as necessidades atuais e prementes naquilo que concerne, por exemplo, à segurança das suas fronteiras e do seu abastecimento energético e perante os crescentes apelos à militarização da União Europeia?

 

Tomás Infante

Mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais – Especialização em Relações Internacionais

NOVA-FCSH

Bibliografia

Bull, H. (1982). Civilian Power Europe: A Contradiction in Terms? Journal of Common Market Studies, 21(2), 149-170.

Cebeci, M. (2012). European Foreign Policy Research Reconsidered: Constructing an ‘Ideal Power Europe’ through Theory. Millenium: Journal of International Studies, 40(3), 563-583.

Diez, T. (1999). Speaking ‘Europe’: the politics of integration discourse. Journal of European Public Policy, 6(4), 598-613.

Diez, T. (2004). Europe’s others and the return of geopolitics. Cambridge Review of International Affairs, 17(2), 319-335.

Diez, T. (2005). Constructing the Self and Changing Others: Reconstructing ‘Normative Power Europe’. Millenium: Journal of International Studies, 33(3), 613-636.

Diez, T. (2013). Normative power as hegemony. Cooperation and Conflict, 48(2), 194-210.

Hyde-Price, A. (2008). A ‘Tragic Actor’? A Realist Perspective on ‘Ethical Power Europe’. International Affairs, 84(1), 29-44.

Larsen, H. (2004). Discourse analysis in the study of European Foreign Policy. In B. Tonra, & T. Christiansen (Eds.), Rethinking European Union Foreign Policy (pp. 62-80). Manchester: Manchester University Press.

Larsen, H. (2020). Normative Power Europe or Capability–expectations Gap? The Performativity of Concepts in the Study of European Foreign Policy. Journal of Common Market Studies, 58(4), 962-977.

Manners, I. (2002). Normative Power Europe: A Contradiction in Terms? Journal of Common Market Studies, 15(4), 405-421.

Manners, I. (2006a). European Union ‘Normative Power’ and the Security Challenge. European Security, 15(4), 405-421.

Manners, I. (2010a). As You Like It: European Union Normative Power in the European Neighbourhood Policy. In R. G. Whitman, & S. Wolff (Eds.), The European Neighbourhood Policy in Perspective: Context, Implementation and Impact (pp. 29-50). Basingstoke: Palgrave-Macmillan.

Manners, I. (2015). Sociology of Knowledge and Production of Normative Power in the European Union’s External Actions. Journal of European Integration, 37(2), 299-318.

Maull, H. W. (1990). Germany and Japan: The New Civilian Powers. Foreign Affairs, 69(5), 91-106.

Milliken, J. (1999). The Study of Discourse in International Relations: A Critique of Research and Methods. European Journal of International Relations, 5(2), 225-254.

Neumann, I. B. (1996). Self and Other in International Relations. European Journal of International Relations, 2(2), 139-174.

Orbie, J. (2008). Civilian Power Europe. Cooperation and Conflict, 41(1), 123-128.

Tonra, B. (2011). Democratic foundations of EU foreign policy: narratives and the myth of EU exceptionalism. Journal of European Public Policy, 18(8), 1190-1207.