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A emergência da atual pandemia causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2 tem colocado em segundo plano o tema das alterações climáticas e do aquecimento global. Sucede que a pandemia ameaça diretamente os sistemas de saúde e os indivíduos, enquanto que as alterações climáticas comprometem os sistemas naturais e humanos mais amplos, tornando, em comparação, as questões do clima menos urgentes face à ameaça da doença (Rosenbloom & Markard, 2020). Não obstante, as medidas políticas de mitigação dos efeitos negativos da pandemia nos sistemas social e económico representam uma oportunidade sem precedentes para os governos mundiais investirem em ações que contribuam para a atenuação das alterações climáticas.
Os eventos climáticos extremos, o declínio dos ecossistemas, a segurança das cadeias alimentares e das reservas de água potável são algumas fontes de risco atuais capazes por si só de causar enormes desafios globais no Séc. XXI (Schwartz, 2020). Embora tais ameaças tenham o potencial de se conjugarem e de causarem efeitos devastadores nas comunidades humanas a um nível internacional, quando comparadas com a doença do COVID-19 não parecem tão próximas e urgentes. Estes perigos continuam a ser, todavia, um fenómeno imediato e intergeracional (Beardsworth, 2020).
Existem semelhanças entre a emergência do novo coronavírus e as alterações climáticas. As falhas de mercado, externalidades, cooperação internacional, uma ciência complexa, assim como questões de resiliência do sistema, de liderança política e de ações que dependem do apoio do público em geral são elementos implicados tanto nas mudanças do clima como na pandemia do COVID-19 (Hepburn et al., 2020). As consequências de ambos os fenómenos são igualmente disruptivas para os sistemas sociais ao redor do globo, sendo tal rutura uma característica dos desastres sociais (Ribeiro, 1995). Neste sentido, é realçada na literatura a importância do Estado enquanto o agente vital para a mudança política focada no desenvolvimento sustentável nas próximas décadas, tanto nacional como internacionalmente (Beardsworth, 2020). A ajuda internacional entre países mais e menos vulneráveis tem como ator principal os Estados, sendo tal solidariedade uma consequência normativa necessária face à realidade material das alterações climáticas (Ibid.)
É possível, contudo, apontar algumas diferenças entre os dois fenómenos. Ao contrário das consequências imediatas da pandemia causada pelo novo coronavírus, as previsões a longo prazo e os modelos relativos às alterações climáticas são difíceis de ser compreendidos pelo público em geral e pelos decisores políticos pois desafiam a intuição e o pensamento a curto prazo (Manzanedo & Manning, 2020). Uma outra diferença evidente entre a mitigação das alterações climáticas e do contágio pelo novo coronavírus é que as primeiras assentam necessariamente em respostas muito mais antecipatórias e globais do que a gestão da pandemia (Klenert et al., 2020).
Os governos nacionais têm procurado diminuir os contágios e óbitos provocados pelo novo coronavírus através de medidas restritivas e do apoio a diversos setores da economia, agregados familiares e indivíduos com recurso a programas económicos e sociais. Neste sentido, os planos de recuperação da pandemia do COVID-19 surgem como uma oportunidade estratégica para avançar simultaneamente a agenda climática e promover uma transição para um mundo pós-COVID mais sustentável (Rosenbloom & Markard, 2020). A própria pandemia demonstra que é possível alterar os estilos de vida da população em geral, mas a falta de preparação e a lenta resposta ao novo coronavírus, as quais provocaram impactos imediatos a nível da saúde e da economia, são razões de preocupação (Botzen et al., 2021), na medida, principalmente, em que expõem as fragilidades da economia e da arena política a um desastre social com as proporções da pandemia do COVID-19. Prevê-se, porém, que as consequências das alterações climáticas sejam ainda mais nefastas para os sistemas sociais.
A falta de medidas contra as alterações climáticas pode ser superada através da ligação entre políticas atuais para minimizar os riscos do novo coronavírus e ações que reduzam os perigos das alterações climáticas, em áreas como os transportes, o turismo e os sistemas alimentares (Botzen et al., 2021). Os decisores políticos podem ainda capitalizar as características das políticas além da redução de emissões, destacando ativamente os benefícios económicos, sociais e para a saúde que advêm das políticas ambientais (Klenert et al., 2020). Desta forma, é possível tornar o desenvolvimento económico pós-COVID mais sustentável bem como sensibilizar os indivíduos para a importância de tal transição.
Em suma, podem ser identificadas cinco políticas com elevado potencial tanto no crescimento económico como nas métricas climáticas, nomeadamente o investimento em infraestruturas físicas ecológicas, a melhoria da eficiência das construções, o investimento em educação e formação, o investimento em capital natural e uma investigação e desenvolvimento (I&D) baseada na sustentabilidade ambiental (Hepburn et al., 2020). Estas medidas permitem, por exemplo, conjugar o crescimento económico com a redução dos gases com efeitos estufa, tornar mais eficiente a utilização de energia, promover a utilização de energias renováveis e impulsionar a formação dos trabalhadores que farão parte desta transição. Na prática, os gastos de recuperação pós-crise oferecem uma oportunidade de promover alguns comportamentos positivos para o clima, como o apoio ao teletrabalho, a expansão da conectividade de banda larga de alta velocidade e a melhoria da eficiência energética das habitações (Hepburn et al., 2020).
Há que notar, porém, que a pandemia e as políticas de resposta à mesma podem aumentar as desigualdades sociais ao nível global. Particularmente, importa reforçar que a crise do COVID-19 provoca impactos díspares entre diferentes nações e grupos sociais, uma característica partilhada com o fenómeno das alterações climáticas (Manzanedo & Manning, 2020). As desigualdades podem ser acentuadas tanto pela ameaça da propagação do novo coronavírus e das mudanças climáticas, como pelas suas políticas de mitigação, o que coloca entraves adicionais na criação de políticas públicas (Klenert et al., 2020). Algumas regiões e comunidades ao redor do globo estão mais suscetíveis aos fenómenos climáticos extremos e às consequências do aquecimento a longo prazo do que outras. Contudo, é referido na literatura que a agenda contra as alterações climáticas desfaz e reorganiza a distinção entre o Norte e o Sul Globais, já que todos os países estão no processo de desenvolvimento face às mudanças no clima e que, dentro desta agenda, a solidariedade entre nações se torna uma resposta moral necessária para uma realidade empírica que implica todos os países (Beardsworth, 2020).
No que concerne a pandemia do COVID-19 e as mudanças climáticas, a cooperação internacional surge como um elemento importante na recuperação do sistema social e no delineamento de estratégias futuras. Neste momento, alguns autores defendem que estabelecer acordos internacionais e percursos para lidar com crises globais emergentes diminuirá a possibilidade de respostas políticas nacionalistas no futuro, assim como comportamentos egoístas por parte das nações e a priorização de indivíduos com um estatuto social e económico mais elevado face à população em geral por parte de decisores políticos (Manzanedo & Manning, 2020). Ademais, há autores que ressaltam que as instituições internacionais continuam a ser importantes enquanto plataformas para o diálogo técnico e a partilha de conhecimento como forma de facilitar a disseminação das melhores práticas globalmente (Klenert et al., 2020). As instituições e os acordos internacionais tornam-se assim fundamentais no momento da emergência do desastre e na recuperação do mesmo.
Por fim, as respostas dos diversos governos e dos cidadãos à pandemia do COVID-19 mostram que estas podem ser massivas e rápidas e que grandes mudanças podem ser realizadas num curto período de tempo (Herrero & Thornton, 2020). Embora não tão imediata, a disrupção nos sistemas sociais resultantes das consequências das alterações climáticas atingirá maiores proporções do que a provocada pelo novo coronavírus. Como tal, será crucial um esforço coletivo a nível local, nacional e ainda internacional, bem como que as experiências com a atual pandemia resultem na aquisição de conhecimentos que, por sua vez, se irão traduzir em medidas futuras de combate às alterações climáticas.
Ana Sofia Lopes
Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais & Mestranda em Sociologia
NOVA-FCSH
Bibliografia
Beardsworth, R. (2020). Climate science, the politics of climate change and futures of IR. International Relations 34(3), 374–390. doi: 10.1177/0047117820946365
Botzen, W., Duijndam, S., & van Beukeringa, P. (2021). Lessons for climate policy from behavioral biases towards COVID-19 and climate change risks. World Development, 137(105214), 1–4. doi:10.1016/j.worlddev.2020.105214
Hepburn, C., O’Callaghan, B., Stern, N., Stiglitz, J., & Zenghelis, D. (2020). Will COVID-19 fiscal recovery packages accelerate or retard progress on climate change? Oxford Review of Economic Policy, 36(S1), S359–S381. doi:10.1093/oxrep/graa015
Herrero, M., & Thornton, P. (2020). What can COVID-19 teach us about responding to climate change? Elsevier Ltd., 4(5), e174. doi:10.1016/S2542-5196(20)30085-1
Klenert, D., Funke, F., Mattauch, L., & O’Callaghan, B. (2020). Five Lessons from COVID-19 for Advancing Climate Change Mitigation. Environmental and Resource Economics, 76, 751–778. doi:10.1007/s10640-020-00453-w
Manzanedo, R. D., & Manning, P. (2020). COVID-19: Lessons for the climate change emergency. Science of the Total Environment, 742(140563), 1–4. doi:10.1016/j.scitotenv.2020.140563
Ribeiro, M. J. (1995). Sociologia dos desastres. Sociologia – Problemas e Práticas, 18, 23–43.
Rosenbloom, D., & Markard, J. (2020). A COVID-19 recovery for climate. Science, 368(6490), 447. doi:10.1126/science.abc4887
Schwartz, S. A. (2020). Climate change, Covid-19, preparedness, and consciousness. Explore (NY), 16(3), 141–144. doi:10.1016/j.explore.2020.02.022