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No dia 4 de março de 2024 o parlamento francês votou a favor da consagração do acesso ao aborto na Constituição, tornando-se país o primeiro do mundo a fazê-lo. O recém-nomeado Primeiro-Ministro Gabriel Attal proclamou as seguintes palavras: “Estamos a enviar uma mensagem a todas as mulheres: O vosso corpo pertence-vos e ninguém tem o direito de o controlar no vosso lugar”. Neste artigo vamos explorar um pouco sobre a história do aborto em França até aos dias de hoje.
Tal como noutros países da Europa, na França pré-moderna o aborto era condenado pelas autoridades religiosas e seculares. Com base em doutrinas morais e religiosas, a atitude dominante considerava o aborto como sendo um pecado e moralmente repreensível. Por conseguinte, as mulheres que procuravam abortar recorriam frequentemente a métodos clandestinos e perigosos, arriscando a sua vida e saúde devido à falta de procedimentos médicos seguros.
Na Primeira República Francesa, o ato de abortar deixou de ser um ato punível por pena de morte e passou a ser considerado como um crime com uma pena de até 20 anos de prisão. Quando foi introduzido o Código Napoleónico de 1810, como uma revisão do Código Penal francês de 1791, e do Código das Infrações e das Penas de 1795, o aborto manteve o seu estatuto de crime. Em 1920 são introduzidas novas leis sobre a proibição do ato aborto e o uso de contracetivos, com o argumento de que era necessário estimular a taxa de natalidade em França para compensar a perda de população provocada pela Primeira Guerra Mundial. Tratava-se de um crime com pena até 6 anos de prisão, e foi também proibida propaganda a favor do aborto.
Em 1942, através da Lei 300 de 15 de fevereiro, implementada pela França de Vichy, o aborto passa a ser considerado um crime capital, punível com pena de morte. Marie-Louise Giraud, uma “faiseuse d’anges” (gíria francesa para “fabricante de anjos”) que efetuava abortos na região de Cherbourg, foi condenada à morte por meio desta lei. O termo “faiseuse d’anges” refere-se a indivíduos, muitas vezes mulheres, envolvidos na prática de abortos ilegais no passado. Eram apelidados com este termo porque eram vistos como prestadores de serviço a mulheres que se encontravam em situações desesperadas, muitas vezes confrontadas com gravidezes indesejadas e sem opções viáveis. No entanto, os procedimentos que efetuavam eram muitas vezes perigosos e comportavam riscos significativos para a saúde e a vida das mulheres envolvidas. Estes indivíduos operavam fora dos limites da lei e muitas vezes enfrentavam graves consequências se fossem apanhados pelas autoridades.
Após a libertação de Paris em 1944, a pena de morte por aborto foi reformada, mas o aborto continuou a ser objeto de processos judiciais. As taxas de aborto ilegal mantiveram-se bastante elevadas durante o período do pós-guerra e um número crescente de mulheres começou a deslocar-se ao Reino Unido a partir de 1967 para abortar, depois de ter sido legalizado o aborto.
Entretanto, começaram os sinais de mudança. Durante o período de agitação civil, na altura acontecimentos de maio de 1968, um novo movimento de direitos civis ganhou destaque nos meios de comunicação social, o Mouvement de Libération des Femmes (“Frente de Libertação das Mulheres”). Este movimento defendia o direito à autonomia em relação aos maridos, bem como direitos relacionados com a utilização de contraceptivos e a legalização do aborto. Em 1971 foi publicado o “Manifesto das 343”, uma carta aberta como o objetivo chamar à atenção para a prevalência do aborto na sociedade francesa, apesar da sua natureza clandestina, bem como apelar à legalização do aborto. Este manifesto foi escrito por Simone de Beauvoir, incluindo as assinaturas de 343 mulheres que admitiam ter feito um aborto ilegal, onde se podia verificar o nome personalidades femininas famosas como a atriz Catherine Denevue.
Em 1975 foi introduzida, pela Ministra da Saúde Simone Veil, e aprovada a “Lei do Véu” (em francês, La Loi Veil), que descriminalizou a prática do aborto em França. Foi concedido às mulheres o direito de interromper a gravidez nas primeiras dez semanas se a sua saúde física ou mental estivesse em risco, se o feto apresentasse anomalias graves ou se a mulher se encontrasse em circunstâncias angustiantes. A Lei do Véu representou um momento decisivo na luta pelos direitos reprodutivos, afirmando a autonomia das mulheres sobre os seus corpos e desafiando as normas patriarcais e o conservadorismo religioso.
Nos anos 80, apesar da legalização do aborto, o debate sobre os direitos reprodutivos continuou em França, com a oposição persistente de grupos conservadores e religiosos. Algumas fações procuraram restringir o acesso ao aborto ou impor regulamentação adicional aos serviços de saúde reprodutiva. No entanto, estes esforços enfrentaram uma forte oposição de ativistas feministas, profissionais de saúde e legisladores progressistas que defendiam a proteção dos direitos das mulheres. Nos anos 90 foram feitos esforços para garantir uma educação sexual abrangente, bem como promover o acesso aos métodos contracetivos. Além disso, foram tomadas ações para combater o estigma em torno do aborto e para fornecer apoio e recursos às mulheres que enfrentam gravidezes não planeadas.
No século XXI foram feitas várias reformas em relação ao aborto. O limite de dez semanas foi alargado para a décima segunda semana em 2001, e foi alargado para catorze semanas em 2022. Ao longos destes anos houve um empenho para garantir o acesso a serviços de aborto de forma segura e legal, com foco na abordagem das disparidades no acesso aos cuidados de saúde e na redução das barreiras aos cuidados reprodutivos para as comunidades marginalizadas. O discurso em torno do aborto expandiu-se para abranger outras questões, como a igualdade de género, a justiça social e os direitos humanos, destacando a interligação da autonomia reprodutiva com outras lutas pela igualdade e justiça.
Em reação à decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos a respeito do caso Dobbs vs. Jackson Women’s Health Organization foram dados os primeiros passos para a consagração do direito ao aborto na Constituição francesa, quando o projeto de lei foi aprovado pela primeira vez a 24 de novembro de 2023. Após outros processos, no dia 4 de março de 2024 o Parlamento alterou o artigo 34.º numa votação de 780 contra 72. Esta alteração fez de França, desde a sua aprovação, a única nação a garantir explicitamente o direito ao aborto na sua Constituição.
Em suma, das sombras das práticas clandestinas à luz do reconhecimento legal e da autonomia reprodutiva, o percurso da França reflete uma história de progresso e um movimento global mais amplo no sentido do reconhecimento dos direitos das mulheres e da promoção da justiça reprodutiva. O que aconteceu em março deste ano em França é certamente um passo em frente, um que pode vir a motivar debates e tomadas de ação, não só pela Europa, como por todo o mundo, de maneira a valorizar este direito importante.
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Referências Bibliográficas
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Cohen, A. (4 de março de 2024). Responding to US, France enshrines abortion access in constitution. Roll Call https://rollcall.com/2024/03/04/responding-to-us-france-enshrines-abortion-access-in-constitution/
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Miguel Toscano, Licenciado em Relações Internacionais pela Universidade de Évora, Mestrando em
Relações Internacionais pela Universidade de Aalborg
Durante os estudos passou por
várias associações estudantis, tendo sido presidente do NERIUE em 2021. Para além
disso, profissionalmente já teve experiência nos ramos da investigação e da gestão de
projetos. Tem forte interesse em temas das RI como a Governança Global, Estudos de
Desenvolvimento e Estudos Ambientais
