Extrema-direita hoje: A utilidade do digital

 As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.

 

A socialização, uma parte importante e inerente ao ser humano, responsável por construir as fundações da sociedade moderna e por moldar a vivência de qualquer um de nós é, muitas vezes, mal interpretada. O mundo em que vivemos encontra-se cada vez mais conectado e, por isso, tomamos como garantido os avanços tecnológicos que nos permitem ter o estilo de vida que hoje temos. Mais que isso, a enorme proliferação das tecnologias digitais deram-nos um horizonte de possibilidades imenso, que ainda hoje estamos por descobrir. Talvez por isso, a maioria dos utilizadores da Internet, por vezes, subestima essas mesmas possibilidades e mantém-se como um típico navegante da world wide web. Uma revolução, como foi e é a da Internet, abrange diversos parâmetros, o que não passa despercebido por toda a gente. Desta forma, tanto os bem como os mal intencionados aperceberam-se da potencialidade da Internet como uma ferramenta de benefício próprio e, como é óbvio, nem na política isso se revelou uma exceção. Assim, o presente artigo visa analisar de forma breve e geral, como certos partidos políticos e integrantes, nomeadamente da extrema-direita, usam a Internet e as redes sociais para promover a(s) sua(s) ideologia(s) extremista(s), persuadir utilizadores a ingressar na sua forma de pensamento e até mobilizar parte da população a reivindicar a sua luta. Pois bem, devido ao tamanho limitado deste artigo, começaremos já por abordar a Alt-right, sem nos focarmos diretamente no neofascismo e no neonazismo.

 

Assim sendo, Alt-right, abreviatura de Alternative right, é um termo cunhado pelo americano Richard Spencer, inspirado no paleoconservador e académico Paul Gottfried (Hawley, 2017). Este termo e movimento tem ganho cada vez mais popularidade no panorama da extrema-direita ao qual pertence, principalmente nos Estados Unidos e, nos últimos tempos, tem se espalhado por todo o mundo. É descrita sucintamente como um conjunto de ideologias de extrema-direita que acredita que a identidade branca está em perigo devido à multiculturalidade, ao politicamente correto e à justiça social (Mudde, 2019), contudo, há, dentro do movimento, quem não concorde com esse posicionamento ideológico, da mesma forma que nem todos os nacionalistas brancos se reveem na Alt-right (Hawley, 2018). Alguns testemunhos de certos integrantes da Direita alternativa identificam a sua ideologia como oposta ao status quo, ao igualitarismo, democracia, imigração, ciência, feminismo, autoridade moral e enaltece o poderio branco, o antissemitismo, o racismo, etc. É até descrita como crítica do próprio conservadorismo e, como o próprio nome indica, procura discutir questões que a direita democrática não discute (Main, 2018). 

 

A Alt-right distingue-se da extrema-direita a que estamos habituados a ouvir falar pela forma como atua e “existe”. Assim, a Alt-right é um movimento formado principalmente online, presentes em plataformas e redes sociais como o Facebook, o Twitter e sobretudo o Reddit e o 4chan (Mudde, 2019). Os apoiantes  da Alt-right costumam recorrer a certos tipos de postagens, nomeadamente “memes” para alcançar novo público. Desta forma, em 2016, por exemplo, com a campanha de Donald Trump à presidência dos EUA, a Alt-right desempenhou um papel de certa relevância no que à sua eleição diz respeito, uma vez que, à data, as redes sociais foram completamente inundadas por memes pro-Trump que conseguiram mudar a narrativa e favorecer o candidato republicano. Esses memes continham elementos de ideologias extremistas, entre as quais de movimentos brancos supremacistas e nacionalistas e fascistas. Ora, essa é uma das estratégias da Alt-right e da extrema-direita da era digital, a de esconder na aparente ironia e humor dos memes e postagens narrativas extremistas que, dessa forma, acabam por se interiorizar na mente do usuário, especialmente perante o público mais jovem (Institute for Strategic Dialogue, 2023). Como afirma o pesquisador em extremismo de direita, Miro Dittrich, “Os extremistas de direita sabem que a sua verdadeira mensagem política não ganha grande força porque é demasiado ameaçadora. Por isso, utilizam uma linguagem codificada e contornam as suas verdadeiras intenções.” (DW News, 2022, tradução livre). É, por isso, uma estratégia de normalização e é nessa normalização do discurso extremista que reside o verdadeiro perigo à sociedade democrática. 

 

Continuando o foco na Alt-right, pelo facto de ser um fenómeno com tamanha ligação com o digital, há que estabelecer o seguinte: não é por ter a sua origem no digital que não possa ressoar na “vida real”. Exemplo disso é o que aconteceu no dia 11 de agosto de 2017, na cidade americana de Charlottesville, no comício intitulado “Unite the Right”. Este comício uniu vários grupos extremistas, entre as quais elementos da Alt-right, alguns pertencentes aos “KKK” e diversos outros grupos neonazis e neofascistas, que contestavam a remoção de uma estátua comemorativa do general Robert E. Lee. Ouviu-se, durante a manifestação, slogans comuns da extrema-direita. “Não nos substituirão”, “os judeus não nos substituirão” e “sangue e solo” foram alguns slogans entoados nos dias em que a manifestação ocorreu. Da mesma forma que ocorria uma manifestação, também uma contramanifestação estava presente no local para fazer frente às reivindicações da extrema-direita, do outro lado da barricada. Infelizmente, o embate acabou em tragédia, quando um dos manifestantes de extrema-direita, usando um veículo, atropelou uma série de contramanifestantes, vitimando Heather Heyer, de 32 anos (Vera, 2021). 

 

Também em Portugal o fenómeno já é perfeitamente reconhecível. Recentemente, no dia 3 de maio, um grupo de homens armados com bastões, facas e uma arma de fogo atacaram imigrantes argelinos na zona do Porto, espancando alguns dos moradores e destruindo o recheio da propriedade, direcionando-lhes insultos racistas (Caeiro, 2024). Sabe-se agora que um dos suspeitos e muito provavelmente os restantes que participaram do ataque serão membros do grupo neonazi 1143, encabeçado por Mário Machado (uma das figuras mais proeminentes da extrema-direita portuguesa) que, inclusive, não nega, num áudio na rede social Telegram, que alguns dos membros do grupo estejam diretamente envolvidos no ataque (Henriques, 2024). 

 

A extrema-direita em Portugal está, à semelhança do que acontece no estrangeiro, ligada a teorias da conspiração, a mais famosa delas, muito provavelmente, sendo a teoria da “grande substituição”. André Ventura, líder do partido de extrema-direita “CHEGA!”, afirmou inclusive que: “Há um risco na Europa de uma crescente, não chamaria substituição… ah… substituição não é a melhor palavra. Eu acrescentaria que há um risco de uma crescente aglomeração, de uma, de uma… de uma certa adulteração, adulteração cultural e civilizacional da Europa com os fluxos migratórios dos países islamizados ou islâmicos” (Leal, 2023). Está aqui descrito um dos padrões mais reconhecíveis da extrema-direita moderna em todo o mundo, o recurso ao eufemismo ou até mesmo ao encobrimento de certos termos a fim de não chocar o público e trazê-lo, através do seu descontentamento, para o seu lado. Assim, por exemplo, a extrema-direita de hoje evita rotular-se como fascista pois tenta fazer convencer que uma vez no poder, jamais tentaria reprimir a população e apelar à violência generalizada (Misik, 2022). Da mesma forma e como afirma Hawley (2017) quanto à Alt-right –  “As pessoas associadas a esta variedade de nacionalismo branco tendem a manter um tom civilizado, evitando os insultos raciais, a linguagem ameaçadora e o vitríolo pelos quais são conhecidos grupos como o KKK e os gangs de skinheads.” (P.23, tradução livre). É, então, normalizando o discurso de ódio que a extrema-direita moderna consegue atrair novos apoiantes para o seu movimento, o que culmina muitas vezes em violência e no ameaça aos direitos humanos, base fundamental de qualquer democracia. Por último, mas não menos importante, a extrema-direita alia-se também à proliferação de desinformação para reforçar a sua presença nos meios digitais. Dia 13, deste mesmo mês de maio, André Ventura aparece num vídeo para a rede social Tiktok a afirmar que o governo brasileiro renuncia a ajuda internacional vinda de Portugal face à catástrofe vivida no Rio Grande do Sul, com o objetivo de “esconder o seu fracasso”. A notícia é obviamente falsa (Aleixo, 2024). À semelhança deste exemplo, vários outros podiam ser mencionados, tanto em Portugal, onde ainda parece haver a falsa ideia de que a extrema-direita ainda não chegou, como ao redor do globo. 

 

Muito podia ainda ser escrito acerca deste tema tão atual e que fomenta tanta curiosidade e investigação, mas, que sirva o presente artigo para isso mesmo, para instigar o leitor a procurar entender os padrões de atuação da extrema-direita. Da mesma forma, que sirva como um alerta para se proteger das trapaças e estratégias que a extrema-direita dá uso nas redes sociais, para evitar cair nas suas armadilhas e igualmente para se educar cada vez mais num mundo onde a informação é cada vez maior, mas cada vez mais passível de ser manipulada. Nem no mundo real nem no virtual estamos completamente seguros quanto à ameaça da extrema-direita.

 

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Referências

 

Aleixo, I. (2024, May 13). Governo brasileiro não recusou doações de Portugal para o RS. UOL. https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas- noticias/2024/05/13/governo-nao-recusou-doacoes-de-portugal-para-o-rs.htm 

 

Caeiro, T. (2024). Grupo munido de bastões e facas agride imigrantes argelinos no Porto. Observador. https://observador.pt/2024/05/04/grupo-munido-de-bastoes-e-facas-agride-imigrantes-argelinos-no-porto/ 

 

DW News. (2022, February 26). How right-wing extremists use social media to lure followers | DW News. Www.youtube.com. https://www.youtube.com/watch?v=pJcTiNgP4To&list=WL&index=23 

 

Hawley, G. (2017). Making sense of the alt-right. Columbia University Press.

 

Hawley, G. (2018). The Alt-Right. Oxford University Press.

 

Henriques, J. G. (2024). Suspeito de agredir imigrantes no Porto participou em manifestação de neonazis. PÚBLICO; Público. https://www.publico.pt/2024/05/12/sociedade/noticia/suspeito-agredir-imigrantes-porto-participou-manifestacao-neonazis-2089970 

 

Institute for Strategic Dialogue. (2023). Memes & the Extreme Right-Wing. ISD. https://www.isdglobal.org/explainers/memes-the-extreme-right-wing/ 

 

Leal, S. (2023). André Ventura nunca se referiu à “teoria da substituição” por não ter dados suficientes? Poligrafo. https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/andre-ventura-nunca-se-referiu-a-teoria-da-substituicao-por-nao-ter-dados-suficientes/ 

 

Main, T. J. (2018). The rise of the alt-right. Brookings Institution Press.

 

Misik, R. (2022, November 28). Today’s far right and the echoes from history. Social Europe. https://www.socialeurope.eu/todays-far-right-and-the-echoes-from-history 

 

Mudde, C. (2019). The far right today. Polity Press.

 

Vera, A. (2021, November 19). Here’s a look back on what led to the Charlottesville “Unite the Right” civil trial. CNN. https://edition.cnn.com/2021/11/19/us/charlottesville-unite-the-right-civil-trial-how-we-got-here/index.html 

Samuel Caires. Natural do Funchal, 22 anos. 

Licenciado em RI pela Universidade de Évora, mestrado em RI e Estudos Europeus.

Áreas de interesse: política, geoestratégia e história. 

Foi Embaixador Júnior do Parlamento Europeu e membro do Núcleo de RI da Universidade de Évora. 

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