As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.
Nos últimos anos, têm sido realizados diversos estudos que questionam a ligação entre a autoridade do Estado e o poder que este exerce sobre o seu território – mais especificamente, sobre os limites do mesmo – e se esta autoridade do Estado sobre os limites do seu território tem aumentado ou diminuído. Devido à desmaterialização e à desterritorialização do controlo de mobilidade dos indivíduos, fomos presenciando uma rejeição gradual do papel das fronteiras nacionais como protetoras do território nacional e como o “último pilar do Estado” (Chalfin 2007). Esta questão é particularmente marcante no caso das fronteiras internas do Espaço Schengen.
O Acordo de Schengen, assinado em 1985, permite que os cidadãos dos estados-membros circulem livremente neste espaço. A Convenção de Schengen, adotada em 1990, por sua vez, estende este direito aos cidadãos de outros Estados que possuem uma autorização de residência num dos Estados-Membros do Acordo Schengen. A implementação desta Convenção conduziu ao desmantelamento dos portos de entrada e ao fim dos controlos sistemáticos nas fronteiras dentro da própria área. Assim, poderíamos concluir que essas fronteiras internas perderam a sua função de regulação de mobilidade e, consequentemente, os Estados-Membros uma parte do seu poder soberano (Colombeau 2017).
A construção de um espaço de livre circulação foi acompanhada por «medidas compensatórias» definidas na Convenção de Schengen. Essas medidas, principalmente de matéria de cooperação policial e judiciária, apontavam para contrabalançar o “défice de segurança” que se esperava que a eliminação das fronteiras internas criasse. Portanto, paradoxalmente, uma medida destinada a implementar o princípio da livre circulação de pessoas dentro do território europeu, na verdade, reforçou a capacidade jurídica da polícia em controlar as fronteiras internas. A criação do Espaço Schengen parece ser uma forma de lidar com o duplo vínculo das fronteiras abertas a nível europeu e do controlo de migração a nível nacional. Os controlos de fronteira não foram eliminados, mas tornaram-se invisíveis para a maioria das pessoas, produzindo um aparente quadro de livre circulação de indivíduos. A proibição de controlos sistemáticos nas fronteiras conduziu à realização de controlos supostamente “aleatórios”, que na prática não são “aleatórios” de forma alguma, pelo contrário, são “direcionados”. O que acontece é que o controlo passou de fixo e sistemático, para móvel e aleatório.
Em 2011 e 2015, houve a reintrodução dos controlos na fronteira franco-italiana, o que foi interpretado como «crise dos migrantes» e «crise Schengen».
A crise de migrantes de 2011 como uma das consequências da “Primavera Árabe” levou a que as forças policiais da fronteira franco-italiana declarassem em fevereiro de 2011 que estariam “submersas” com os milhares de migrantes que cruzavam a fronteira, essencialmente da Tunísia rumo à Itália, fugidos dos horrores da situação vivida no Norte de África. As reações foram diversas. Itália decretou o estado de emergência humanitário, tendo insistido na solicitação de ajuda à UE para lidar com tais afluxos de pessoas indocumentadas. Tendo sido a resposta da UE tardia, o governo italiano de Silvio Berlusconi chegou a um acordo com as autoridades tunisianas para estancar o fluxo de partidas a 5 de abril de 2011 e decidiu, por razões humanitárias, conceder autorizações de residência temporária para “cidadãos de países do Norte da África”. Consequentemente, imensas pessoas com a autorização de residência temporária tentaram entrar em França, até esta anunciar, pouco tempo depois, a reintrodução de controlos na sua fronteira com Itália. Seguiram-se acusações diretas recíprocas, entre Itália e França, de desrespeito pelas leis do “Espaço Schengen”. Itália acusava os Estados do “Espaço Schengen” de não lhe terem prestado auxílio para lidar com esta situação anormal, acusando especificamente França de violação da norma proibitiva do encerramento das fronteiras nacionais nas circunstâncias vertentes. A 26 de abril de 2011, Berlusconi e Sarkozy tomaram uma posição diplomática comum, na qual referiram que houve falhas nos regulamentos de Schengen e enviaram uma carta ao Conselho Europeu pedindo uma revisão do Código de Fronteiras Schengen. O artigo 29.º do Regulamento (UE) n.º 1051/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, previa agora a possível introdução temporária das fronteiras internas, durante dois anos, sempre que existam «deficiências graves» nas fronteiras externas.
Entre abril e junho de 2015, a fronteira franco-italiana viu-se no mesmo problema. Os naufrágios de 12, 18 e 19 de abril de navios cheios de migrantes tornaram-se um símbolo das falhas nas políticas de imigração europeias. Enfrentando um aumento nas chegadas, a polícia francesa determinou que nenhum migrante estava autorizado a entrar num comboio que saísse da estação ferroviária de Nice para a região de Paris (PAF, 15 de junho de 2015). De um dia para o outro, os migrantes que chegam à pequena cidade de Ventimiglia começaram a ser bloqueados na fronteira. Em 2015, como havia acontecido em 2011 (Le Figaro, 6 de abril de 2011), a Cruz Vermelha italiana abriu um centro para os migrantes. A cooperação entre as autoridades francesas e italianas continuou da mesma maneira impercetível ao longo do ano de 2015.
Em novembro de 2015, após a declaração francesa do estado de emergência, os controlos nas fronteiras foram oficialmente “reintroduzidos” em todas as fronteiras nacionais francesas. A partir desse momento, o procedimento de deportação para a Itália mudou. A polícia francesa emitiu uma decisão de “não admissão”, como faria em qualquer fronteira externa, e deportou os migrantes para a Itália. A reintrodução dos controlos nas fronteiras foi, portanto, primeiro não oficial e ligada a preocupações de gestão da migração, e mais tarde oficialmente notificada como medida de segurança e contraterrorismo (Piçarra 2017). Observa-se uma discrepância entre a forma como os governos nacionais notificam o restabelecimento dos controlos nas fronteiras às instituições europeias e as práticas efetivamente implementadas nas fronteiras internas do espaço Schengen.
A falta de solidariedade e a reimposição das fronteiras internas por parte dos Estados-Membros são vistos como um presságio do fim do espaço Schengen e, portanto, da livre circulação, liberdade, segurança e justiça na Europa. No entanto, de acordo com um estudo feito por Votoupalová (2019), a crise europeia de 2015 não foi um motivo suficiente para colocar em causa o fim do Espaço Schengen, pois este continua, apesar de tudo, em funcionamento. É importante ressaltar que, de acordo com van der Woude e van Berlo (2015), a razão predominante para a reintrodução dos controlos internos são eventos políticos ou desportivos, não a migração. No entanto, isso mudou recentemente e parece que reintroduções baseadas em fluxos migratórios causaram muito mais tensões do que aquelas baseadas em eventos desportivos ou políticos.
O Acordo de Implementação de Schengen (1995) assume que poderia haver uma possível reintrodução temporária dos controlos internos se “a ordem pública ou a segurança nacional assim o exigirem” (Artigo 2º, nº2). No entanto, demorou mais vinte anos para se desenvolver regras detalhadas sobre como agir em situações de emergência. Atualmente, a peça fundamental da legislação que descreve as condições em que as reintroduções internas são possíveis é o Código das Fronteiras Schengen (SBC), que foi adotado em 2006 e alterado de forma mais significativa em 2013 e 2016. O SBC define as fronteiras externas e internas e regula em que condições os controlos nas fronteiras internas podem ser reimpostos.
A Comissão Europeia considerou que todas as reintroduções efetuadas até agora estão em conformidade com as regras de Schengen. O principal problema parece residir na fronteira externa, e não no espaço Schengen, pois a aplicação da imposição das fronteiras internas parece ser colocada devido à falta de fortalecimento das fronteiras externas.
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Bibliografia
Casella Colombeau, S. (2015). “Policing the internal Schengen borders – managing the double bind between free movement and migration control”. Policing and Society, 27(5), pp.480–493.
Casella Colombeau, S. (2019). “Crisis of Schengen? The effect of two “migrant crises” (2011 and 2015) on the free movement of people at an internal Schengen border”. Journal of Ethnic and Migration Studies, pp.1–17.
Ceccorulli, M. (2018). “Back to Schengen: the collective securitisation of the EU freeborder area”. West European Politics, 42(2), pp.302–322.
Chalfin, B. (2007). “Customs regimes and the materiality of global mobility: governing the Port of Rotterdam”. American behavioral scientist, 50 (12), 1610–1630.
Mendes De Oliveira, A. e Joaquim De Matos, H. (2017). “Schengen e segurança europeia. A crise de migrantes como ameaça à liberdade de circulação na união europeia”. Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna
Piçarra, N. (2017). “Frontières de l’Union: Chronique d’une ‘recommandation’ Annoncée Ou La Flétrissure”. Réseau Universitaire Européen. Droit de l’Espace de Liberté, Sécurité & Justice. (blogue).
Votoupalová, M. (2019). “The Wrong Critiques: Why Internal Border Controls Don’t Mean the End of Schengen”. New Perspectives, 27(1), pp.73–99.
Maria Inês Neves, Mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais na NOVA-FCSH.
Áreas de interesse: Relações transatlânticas, segurança e defesa internacional, análise de política externa, migrações. Estágio curricular no Alto Comissariado para as Migrações.