De Índia a Bharat?

 As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.


A Cimeira dos G20 que ocorreu em Setembro deste ano foi marcada por algumas particularidades, tais como a ausência do Presidente da República Popular da China e, despertando neste artigo o nosso maior interesse, especulações sobre uma eventual mudança de nome da Índia

 

Não obstante a designação mais comum para o segundo maior país do Continente Asiático (se excluirmos a Rússia, que partilha o território entre a Europa e a Ásia) ser “Índia”, outros nomes são-lhe atribuídos. Os nomes Bharat e Indostão (Hindustan, em inglês) são mencionados como alternativas de identificação entre os servidores públicos indianos, assim como para o público geral do país[1].

 

O partido do atual primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi – o Partido do Povo Indiano – deve sustentar a sua posição no sentido de alterar o nome do país, precisamente no que concerne à frequência e à disseminação do nome Bharat entre a população indiana. Para além disso, a sugestão do nome Bharat tem razões históricas: é um termo encontrado em documentos com pelo menos vinte séculos de existência[2]. O nome Bharat alude a um território algo ambíguo, o Bharatavarsa, que ia para além das fronteiras atuais da Índia e incluía, muito provavelmente, parte do território atualmente correspondente à Indonésia[3]. Juridicamente e por último, o nome Bahrat é um dos dois nomes oficiais do país, pelo que não existirão objeções constitucionais a esta alteração de nome[4].


Por seu lado, argumentos contrários a esta alteração são apresentados pelo partido da oposição e por outros críticos. Em primeiro lugar, o nome Índia é considerado demasiado antigo e integrado na comunicação indiana e internacional para ser abandonado. Por outras palavras, o nome Índia é o que torna o país, segundo estes críticos, internacionalmente reconhecido. Em segundo lugar, esta alteração de nome pode ser perspetivada como uma tentativa de minar o legado do Império Mongol, um império extinto cuja religião oficial era o Islão[5]. Algumas figuras da academia já chegaram a afirmar que a controvérsia tem origem no carácter “intolerante” do Governo de Modi e no seu “desrespeito contínuo pela constituição e leis”[6].


No que concerne ao ambiente político doméstico da Índia, uma nova aliança de oposição ao Governo de Modi foi formada com o claro objetivo  de retirar o atual primeiro-ministro do país do poder. Trata-se de uma aliança composta por vinte e seis partidos políticos e tem o nome de Aliança Inclusiva Desenvolvimentista Nacional Indiana (Indian National Developmental Inclusive Alliance), sendo que a sigla em inglês é precisamente “INDIA”. Portanto, a mudança de nome que está em causa é um assunto fulcral no surgimento desta aliança política[7].


Esta polémica não aconteceu antes de outras decisões resultantes de uma tentativa de esquecimento de um passado colonial na Índia. Ainda em Setembro de 2022, uma das mais importantes avenidas na Índia, o Rajpath (“Caminho do Rei”), teve o seu nome alterado para Kartavya Path (“Caminho do Dever”). Foi um arquitecto britânico, Edwin Lutyens, que construiu o modelo dos dois pontos extremos do Raipath, que são o Rashtrapati Bhavan (a residência do chefe de estado indiano) e a Porta da Índia. Este último foi construído em memória dos soldados indianos que lutaram ao lado dos britânicos na I Guerra Mundial. O Raipath e a Porta da Índia são considerados monumentos coloniais, sendo que essa justificação serviu também para a alteração do nome de outras infraestruturas e monumentos, tais como a Estrada do Caminho da Corrida (agora Lok Kalyan Marg[8]) e da Estrada de Dalhousie (agora Estrada Dara Shikoh[9]). É o próprio partido de Modi que assume estas medidas como visadas à libertação de uma “mentalidade colonialista”[10].

 

Os indianos são ensinados a responsabilizarem o falhanço na salvaguarda da independência política e cultural da Índia pelo triunfo do colonialismo. Mais concretamente, a riqueza natural e cultural da Índia e a falta de união demonstrada no país tornou a Índia, segundo o conteúdo dos manuais de história de educação básica indianos, num país vulnerável à exploração e conquista por parte de potências estrangeiras. A presença desta versão da história na consciência popular sustenta uma hipersensibilidade à necessidade de reivindicações e asserções relativas à proteção de uma “nação-mãe”. 


No país, a falta de confiança depositada em “critérios ocidentais” para manterem uma certa autoestima: desde o momento da independência que os indianos escolhem entre uma tentativa de viverem plenamente como aquilo que é completa e originalmente seu e uma imitação algo corrente daquilo que, apesar de todos os esforços nesse sentido, nunca foi seu, como é o caso da língua inglesa e de costumes ocidentais. Portanto, a resposta sugerida pelas figuras políticas mais destacadas do país passa pela reinvenção de tradições míticas e alterações de nomes. Apesar de haver um compreensível foco na recuperação do ethos cultural mítico da Índia destinado à fomentação de tendências nacionalistas ou hiper-nacionalistas, o executivo indiano pode correr o risco de isolar este país asiático intelectual e profissionalmente, pelo que caberá encontrar um ponto de equilíbrio[11]

 

Pode ser sugerido que a ascensão de movimentos e partidos nacionalistas e a difusão de algumas interpretações etnocêntricas da história (que privilegiem a recuperação do cânone ocidental) possam estimular estas tomadas de decisão que ocorrem na Índia e noutros países do Terceiro Mundo. É a pressão de uma reinvenção do “grande passado” que atinge estes países, e aí a Índia não é exceção: ao lado de uma imitação do Ocidente no que toca às instituições e às estruturas administrativas (como a democracia, o parlamentarismo e as divisões secretariais e ministeriais) existe um destaque para os valores nacionais do passado[12]

 

As civilizações pluralistas que são apresentadas ou tomadas como tradicionais e homogéneas pode empoderar as mesmas ou, pelo contrário, marginalizá-las. Muito provavelmente a pensar na obtenção de uma eleição vitoriosa, o primeiro-ministro Modi apropria-se de avanços científicos e de defesa para projetar enquanto exemplos da sabedoria médica e científica tradicional da Índia. É o caso do conhecimento de aviões (pushpaka vimana) e da a cirurgia plástica (a cara de Lorde Kanesha, o Deus Elefante)[13]


As alterações de nome e de referências e a retórica hiper-nacionalista poder servir pelo menos dois propósitos: os estados-nação asseveram assim a sua autodeterminação e a sua capacidade de agir e de intervir, geralmente em resposta a desafios (reais ou interpretados enquanto tal) à autodeclarada pureza e à grandeza do país; tentar ultrapassar identidades múltiplas através da conceção de uma nova identidade[14]


Concluindo, o nacionalismo indiano manifesta-se nesta decisão de alterar o nome de um país inteiro, sendo ainda a extensão de uma luta anticolonial travada por aqueles que mais dela sentem necessidade.


___________


[1]https://www.euronews.com/culture/2023/09/09/will-india-be-renamed-bharat-heres-why-some-countries-change-their-name

[2] Ibidem

[3]https://www.aljazeera.com/news/2023/9/6/india-or-bharat-whats-behind-the-dispute-over-the-countrys-name

[4]https://www.euronews.com/culture/2023/09/09/will-india-be-renamed-bharat-heres-why-some-countries-change-their-name

[5] Ibidem

[6]https://www.aljazeera.com/news/2023/9/6/india-or-bharat-whats-behind-the-dispute-over-the-countrys-name

[7] Ibidem

[8]https://www.indiatimes.com/news/india/the-name-of-race-course-road-changes-pm-modi-s-residence-now-reads-7-lok-kalyan-marg-262194.html

[9]https://indianexpress.com/article/cities/delhi/dalhousie-road-renamed-to-dara-shikoh-road-4510064/

[10]https://www.southasiamonitor.org/spotlight/india-or-bharat-debate-reflects-postcolonial-insecurities-not-tune-modern-nationhood

[11] Ibidem

[12] Ibidem

[13] Ibidem

[14] Ibidem

Lourenço Ribeiro. Natural do Porto, 23 anos, Mestrado em Políticas Públicas no ISCTE.

Licenciado em Sociologia e “com Portugal e todos os seus convidados e admiradores no coração, onde quer que estejam.”

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