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Numa primeira instância, a corrida travou-se na busca científica pela vacina que imunizava o nosso sistema biológico contra a Covid-19, doença provocada pelo vírus SARS-CoV-2. Praticamente todas as grandes potências mundiais detêm hoje as suas produções próprias, provenientes de empresas farmacêuticas nacionais, mas apenas algumas são exportadoras de vacinas contra a Covid-19 às restantes áreas do mundo. O termo adjacente a este facto, cunhado pelos políticos, jornalistas e investigadores ocidentais, denomina-se “diplomacia da vacina” (Huang, 2021; Safi, 2021). A lógica que as potências e pensadores ocidentais têm atribuído a este termo transcreve-se da seguinte forma: os Estados exercem uma forma de diplomacia ao exportarem vacinas para os países que se encontram na sua área de influência ou sobre os quais procuram exercer influência – sendo a corrida à vacina sinónimo de corrida pela influência (Huang, 2021; Safi, 2021).
Isto significa que as áreas que estão a receber vacinas são as potências produtoras – como a China, os Estados Unidos, a Rússia, o Reino Unido e a União Europeia – e aqueles países onde algumas destas detêm ou pretendem deter uma esfera de influência, implicando que as regiões fora desta área de influência não estejam a receber vacinas de todo ou estejam a receber menos doses de vacinas, como é o caso do Global South (Coronavirus (COVID-19) Vaccinations – Statistics and Research, 2021; Safi, 2021). Para além disso, segundo Huang (2021), o facto de os países ocidentais terem praticado uma espécie de “nacionalismo da vacina” criou espaço para que outros países – nomeadamente a China -, tivessem espaço para desenvolver uma “diplomacia da vacina”, que se traduz no aumento da sua influência mundial, em termos gerais, mas, sobretudo, da sua influência regional. Pelo que aquilo em que a corrida à vacina se traduz realmente é no acentuar das discrepâncias entre regiões na busca pela imunidade global, impossibilitando uma vacinação eficiente à escala global (Bollyky & Bown, 2021).
A lógica é igual à de um jogo de Monopólio: primeiro, procuram-se as melhores ruas – um lote isolado não basta, por mais valor que tenha, têm de ser os três lotes seguidos -, tentando sempre obtê-las primeiro que o adversário; depois, preenchem-se as ruas com casas, mais uma vez, procurando ser o primeiro com mais casas de forma a adquirir uma vantagem relativa. Na corrida à vacina: primeiro, estabelecem-se acordos de vacinação com os países ao nosso redor, depois procuramos exportar as vacinas o mais rápido possível aos restantes “lotes”, para que detenham primeiro acesso às nossas e possamos estabelecer a nossa influência. É exatamente a mesma lógica de vantagem relativa sobre o adversário.
Mas o objetivo, perante uma pandemia mundial, não deveria ser a maximização de eficiência de uma vacinação também esta à escala global? Não deveriam ser as instituições internacionais a distribuir as vacinas, evitando os nacionalismos, as diplomacias e as influências? A União Europeia tem sido a responsável pela gestão da distribuição de vacinas pelos seus Estados-membros, o que tem corrido bem, tendo em conta que a Europa é das regiões com mais vacinados per capita (Coronavirus (COVID-19) Vaccinations – Statistics and Research, 2021). Porém, a UE (e o mundo ocidental) não se tem demonstrado uma grande praticante da “diplomacia da vacina”, ao contrário da China, que tem fornecido não apenas a sua esfera de influência, mas países do Global South, tais como o Chile, o Camboja, o Perú, a Indonésia, o Zimbabué e as ilhas Seicheles (Huang, 2021). Para além disso, a China tem procurado estender a sua influência, através do grande desenvolvimento da sua cadeia de fornecimento, aos BRI e aos países em desenvolvimento (Freymann & Stebbing, 2020; Huang, 2021). Alguns países nas regiões da América Latina e do Sul Asiático (mas não só) acompanham os valores estatísticos dos países ocidentais devido à diplomacia exercida pela China e pela Rússia, que têm exportado grandes doses de vacinas às respetivas áreas (Safi, 2021). Destaca-se o caso particular da Sérvia, que se encontra geograficamente na Europa, mas como não pertence à União Europeia o seu acesso às vacinas tem dependido das exportações russas e chinesas. O valor avultado que os sérvios têm despendido na compra e na tentativa de produção de uma vacina própria indica que os mesmos estão a caminhar para um hipotético exercício de “diplomacia da vacina” na área dos Balcãs (Safi, 2021). Isto significa que as instituições internacionais não têm tido um bom desempenho na alocação de vacinas em termos globais e a maximização de eficiência da vacinação se afasta ao nível de uma utopia. Perante a sua incapacidade de gerir o fenómeno pandémico, os Estados soberanos procuraram soluções internas (Maull, 2021) – que se encontram agora a exportar numa lógica de vantagem relativa sobre os outros.
Não estamos a insinuar que a gestão de distribuição e alocação de vacinas como está a ser feita é mais eficiente do que seria hipoteticamente a gestão realizada na esfera das instituições internacionais, apenas que, tendo em conta as condicionantes, acrescentando-lhes um acentuar das hostilidades na esfera internacional, o cenário atual era bastante previsível. Partindo do pressuposto de que um cenário de mútuo consenso para a maximização da eficiência seria praticamente impossível, considerando que os Estados atuam consoante os seus interesses, procuram uma diaconia antagónica para com os outros (caso dos EUA face à China) e promovem discursos que procuram normalizar as suas ações – o chamado “nacionalismo da vacina” e a promoção da perceção dos outros enquanto inimigos -, então a eficiência máxima de vacinação possível é aquela que temos agora? Provavelmente, mas os cenários hipotéticos não servem de nada, porquanto a realidade que temos em mãos continua a ser uma em que o continente africano detém 0,89 vacinações por cada 100 pessoas, enquanto a União Europeia marca 19,01. (Coronavirus (COVID-19) Vaccinations – Statistics and Research, 2021). Acima destes últimos destacam-se o Chile, com 59,25, e os Emirados Árabes Unidos, com 87,55, que, por recorrerem a vacinas chinesas e russas, conseguem ultrapassar os mais avançados países ocidentais. Relativamente ao continente africano, o processo de vacinação na área tem estado dependente de projetos diplomáticos de grandes produtores ou do acesso, gestão e alocação de vacinas por parte da WHO. Mesmo em tempos estranhos, parece que as soberanias do mundo não se conseguem convergir para o alcance do bem comum, preferindo as “picardias” do costume.
Carolina Correia
Mestranda de Ciência Política e Relações Internacionais
NOVA-FCSH
Referências
Bollyky, T. J., & Bown, C. P. (2021, Fevereiro 1). The Tragedy of Vaccine Nationalism. https://www.foreignaffairs.com/articles/united-states/2020-07-27/vaccine-nationalism-pandemic
Coronavirus (COVID-19) Vaccinations—Statistics and Research. (2021, Abril 4). Our World in Data. https://ourworldindata.org/covid-vaccinations
Freymann, E., & Stebbing, J. (2020, Novembro 5). China Is Winning the Vaccine Race. https://www.foreignaffairs.com/articles/united-states/2020-11-05/china-winning-vaccine-race
Huang, Y. (2021, Março 12). Vaccine Diplomacy Is Paying Off for China. https://www.foreignaffairs.com/articles/china/2021-03-11/vaccine-diplomacy-paying-china
Maull, H. W. (2021). The Coronavirus Pandemic and the Future of International Order. Survival, 63(1), 77–100. https://doi.org/10.1080/00396338.2021.1881255
Safi, M. (2021, Fevereiro 19). Vaccine diplomacy: West falling behind in race for influence. The Guardian. https://www.theguardian.com/world/2021/feb/19/coronavirus-vaccine-diplomacy-west-falling-behind-russia-china-race-influence