Confrontar o Racismo nas Relações Internacionais

 As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.

A referência a raça surge como algo anacrónico e desajustado numa era que se pressupõe “pós-racial”, na medida em que se crê que as questões raciais já foram superadas, ainda para mais num plano internacional em que o imperialismo e o colonialismo já não são (aparentemente) uma realidade. Na verdade, o que será argumentado neste artigo é que a raça foi e continua a ser um dos orientadores do comportamento dos Estados no plano internacional, facto que tem sido negligenciado pelas teorias das Relações Internacionais (RI) mainstream.

Tal como Le Melle (2009) afirma, a raça tem apenas importância como fenómeno social, rejeitando-se o significado biológico que lhe tinha sido atribuído no passado com o racismo científico. Neste sentido, o termo raça será utilizado doravante para se referir a um “grupo de pessoas que são socialmente definidas na base de características fenotipicamente similares (e dissimilares)” [tradução livre] (Le Melle, 2009), contrastando com os conceitos de nação e etnia, que não serão aprofundados. O racismo pode ser, por isso, compreendido como um sistema social que determina a existência de uma hierarquia entre raças, estando a sua origem ideológica associada à história da expansão europeia, na qual os brancos “carregaram o peso” da missão civilizadora para que as raças “inferiores” (i.e. não-brancas) conseguissem “ascender na escada da evolução” [tradução livre] (Henderson, 2013).

Para o presente artigo, importa desvendar o impacto estrutural do racismo, cujo “corolário da assumida superioridade é o direito a priori de a raça superior aceder aos direitos e privilégios da sociedade e dominar o inferior para maximizar valores e interesses racistas” [tradução livre] (Le Melle, 2009). No contexto da disciplina de RI, pretende-se avaliar não só o impacto deste fenómeno social na conceção das teorias mainstream, mas também o modo como a distribuição de poder no sistema internacional dita que determinados grupos raciais sejam constantemente subalternizados.

O racismo nas RI pode manifestar-se segundo três eixos: i) ao contrário de outras Ciências Sociais, como a Antropologia ou a Sociologia, a disciplina de RI ainda não confrontou criticamente as bases teóricas e conceptuais que colheu do legado do racismo científico; ii) a disciplina peca pelo seu enviesamento ocidental, assente num etnocentrismo que deixa de fora as experiências e pontos de vista do “resto”; iii) há poucas referências de académicos não-ocidentais em Relações Internacionais, o que significa que a disciplina está a perder massa crítica importante.

De acordo com Henderson (2013), “o racismo informa a teoria das RI através da influência das assunções empíricas, éticas e epistemológicas dos seus paradigmas” [tradução livre] (e.g. a forma como se vê e se estuda o mundo pode levar a que se privilegie a experiência de uns em detrimento da de outros). O autor eleva esta questão sugerindo que as fontes destas assunções racistas se encontram nas próprias construções teoréticas das teorias das RI, como é o caso do conceito de anarquia. A conceptualização de anarquia em RI parte das reflexões teóricas de Hobbes (e de outros autores clássicos) sobre o “estado natural”, uma condição anterior ao estabelecimento do contrato social numa sociedade. Mills, em The Racial Contract (referenciado em Henderson, 2013), demonstra que o “estado natural” seria apenas hipotético para os povos brancos, que, sendo racionais, sempre viveram em sociedade e nunca cairiam nessa condição primitiva. Esta interpretação de Hobbes pode, assim, explicar as bases que sustentaram a “missão civilizadora” dos europeus para com os povos “bárbaros” da América, África e Ásia. Henderson (2013) prossegue a explicar que a centralidade da anarquia e do poder no Realismo e Liberalismo pode ser atribuída às “obrigações” das grandes potências para “domar” a anarquia dos “trópicos”. Esta ideia está, inclusive, inerente à Tese da Paz Democrática, ao ramo pluralista da Escola Inglesa e à Teoria Neorrealista da Estabilidade Hegemónica. Um dos teóricos da Teoria da Estabilidade Hegemónica, Robert Gilpin, chega a afirmar que o comércio livre tinha sido imposto por uma “sociedade superior” (Acharya, 2000).

Sampson (referenciado em Henderson, 2013) nota que o discurso em RI tende a percecionar a anarquia como “primitiva”, termo já rejeitado pela Antropologia nos anos 60. Na mesma linha, Acharya (2000) afirma que, embora não se julgue as práticas do “Terceiro Mundo” como “bárbaras” ou “primitivas”, de facto “existem equivalentes a estas categorias antropológicas”, como a constante referência à racionalidade. De acordo com Hobson (2015), o fim do pensamento do racismo científico em RI levou à expansão do institucionalismo eurocêntrico e, consequentemente, ao branqueamento de termos como “civilização”, “barbarismo”, “imperialismo”, e à substituição por outros, como “tradição/modernidade”, “centro/periferia”, “hegemonia”, etc. Na obra Orientalism, Said (referenciado em Vincent, 1982) sublinha o hábito de o Ocidente construir dicotomias nas quais se coloca em contraposição ao “resto”.

Um dos exemplos conceptuais mais evidentes da parcialidade ocidental em RI é o uso recorrente da expressão “Terceiro Mundo” que, embora desatualizada, continua a surgir no vocabulário da disciplina; outro aspeto que podemos atribuir ao eurocentrismo é a designação “Médio Oriente”, que continua a colocar a Europa como ponto de referência geográfico (Le Melle, 2009). A tendência para se desconsiderar as experiências não-ocidentais é evidente na forma como o movimento da descolonização é constantemente ofuscado pela Guerra Fria, apesar de ter tido um alcance global (Hobson, 2015). Hans Morgenthau, em Politics Among Nations, chega até a referir-se a África e a Ásia como “espaços politicamente vazios” (Henderson, 2013), e à descolonização como o “triunfo das ideias morais do Ocidente” (Hobson, 2015).

Embora a raça se encontre ausente das reflexões teóricas sobre RI, os acontecimentos internacionais são, em muitos momentos, motivados por questões raciais. Krishna (referenciado em Henderson, 2013) considera que a preferência pela abstração teórica, invés da análise histórica, faz com que certos acontecimentos sejam ignorados em RI, tais como a escravatura, a ocupação das terras de povos indígenas, a violência, o colonialismo, alguns dos aspetos que determinaram as desigualdades raciais da atual ordem global (Henderson, 2013), principalmente ao nível da distribuição dos recursos. Contudo, tal como reconheceu Paul G. Lauren (referenciado em Henderson, 2013), a raça surge no cerne das grandes discussões sobre Direitos Humanos do século XX:

«The first global attempt to speak of equality focused upon race. The first human rights provisions in the United Nations Charter were placed there because of race. The first international challenge to a country’s claim of domestic jurisdiction and exclusive treatment of its own citizens centered upon race. The international convention with the greatest number of signatories is that on race. Within the United Nations, more resolutions deal with race than any other subject. And certainly one of the most long-standing and frustrating problems in the United Nations is that of race. Nearly one hundred eighty governments, for example, recently went as far as to conclude that racial discrimination and racism still represent the most serious problems for the world today.»

Adotando a unidade de análise raça, pode-se explicar o porquê de o Estado de Israel – frequentemente considerado europeu e, por isso, parte do Ocidente – ser reconhecido por um amplo quórum internacional, enquanto que a Palestina continua à espera de reconhecimento por grande parte dos países ocidentais; ou o porquê de certas políticas de controlo de imigração discriminatórias serem seguidas (Vincent, 1982; Persaud & Walker, 2001; Le Melle, 2009), como foi o caso da «Muslim Ban» da Presidência Trump.

Outro aspeto da política mundial que merece atenção é a imiscuição das potências do Ocidente nos assuntos internos dos Estados não-ocidentais sob a bandeira das “intervenções humanitárias”. Ao atuar deste modo, o Ocidente adota uma postura paternalista que retira agência aos Estados não-ocidentais, justificando as suas intervenções com discursos comparáveis aos da era do imperialismo europeu (e.g. reivindicando a necessidade de “manutenção da ordem”). À semelhança do colonialismo, as intervenções humanitárias são encaradas como “benignas”, evocando, frequentemente, o propósito de exportação do modelo liberal (a “missão civilizadora” da era contemporânea). Os povos não-ocidentais são, mais uma vez, integrados à força numa ordem que continua a “infantilizá-los” e a manipulá-los para proveito do Ocidente.

Ao continuar a desconsiderar as perspetivas dos Estados não-ocidentais (e, inclusivamente, dos teóricos não-ocidentais), a disciplina de RI perpetua falsas asserções sobre a política mundial, tais como as enumeradas por Acharya (2016): “a celebração da Guerra Fria como um longo período de paz, a exclusão das guerras coloniais na construção dos fundamentos da Teoria da Paz Democrática, e a tendência inicial na literatura construtivista para se negligenciar a criação de normas por atores não-ocidentais” [tradução livre]. Silenciar o racismo em RI faz com que aspetos de ordem internacional sejam dispensados pela academia e que se continue a negar a existência de um sistema que não conseguiu, totalmente, romper com os preceitos anteriores e acomodar os interesses do “resto”.

Tânia Liberato
Aluna de Licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais

NOVA-FCSH

Bibliografia

Acharya, A. (2000). Ethnocentrism and Emancipatory IR Theory. In S. Arnold, & J. M. Bier, Displacing Security (pp. 1-18). Toronto: Centre for International and Security Studies.

 

Acharya, A. (2016). Advancing Global IR: Challenges, Contentions, and Contributions. International Studies Review, 18, 4-15.

 

Henderson, E. A. (2013). Hidden in plain sight: Racism in International Relations Theory. Cambridge Review of International Affairs, 26(1), 71-92.

 

Hobson, J. M. (2015). Re-Embedding the Global Colour Line Within Post-1945 International Theory. In A. Anievas, N. Manchanda, & R. Shilliam, Race and Racism in International Relations: Confronting the Global Colour Line (pp. 81-97). Londres: Routledge.

 

Le Melle, T. J. (2009). Race in International Relations. International Studies Perspectives, 10, 77-83.

 

Persaud, R. B., & Walker, R. B. (2001). Race in International Relations. Alternatives, 26(4), 373-376.

 

Vincent, R. J. (1982). Race in International Relations. International Affairs, 58(4), 658-670.

 

Vitalis, R. (2000). The Graceful and Generous Liberal Gesture: Making Racism Invisible in American International Relations. Millennium: Journal of International Studies, 29(2), 331-356.