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Qual é a primeira coisa que nos salta à cabeça quando pronunciamos as palavras América Latina? Deixo esse exercício ao critério de cada um. Porém, uma coisa é certa: esse universo de países é muitas das vezes relegado para segundo plano deste lado do Atlântico Norte. Essa não é, porém, uma razão para que o Atlântico Sul e, em especial, a América Latina, não mereça a nossa atenção.
O termo América Latina foi cunhado por intelectuais franceses (L’Amerique latine) no século XIX, como uma forma de justificar a intervenção da França de Napoleão na região (Bethell, 2010). Deste lado do Atlântico, tendemos a imaginar este conjunto de países como uma realidade homogénea atravessada por problemas estruturais comuns no plano social, político e económico: desigualdades sociais devastadoras, pobreza, polarização e fragmentação política, debilidade das democracias, economia informal e crime organizado, incipiência do Estado e um elevador social totalmente paralisado (Silva, 2020). Assim sendo, tendemos a reduzi-los somente a isso, descurando o saldo positivo que as potencialidades sociais e económicas representam. E quais são?
Para descobrir, tentemos desdobrar a América Latina em números. De acordo com o Statistical Yearbook for Latin America and the Caribbean 2020, organizado pela Comissão Económica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a América Latina compreende uma vasta extensão territorial, perfazendo um total de 20 países. São eles a Argentina, Bolívia, Brasil, Chile Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Perú, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. Para termos uma ideia das dimensões territoriais latino-americanas, quando comparadas com a realidade europeia, vejamos os seguintes exemplos (Alencar, 2016): a extensão territorial do Estado de Pernambuco (Brasil), corresponde aproximadamente à de Portugal, ou seja, 92 mil km2. Já no México, a extensão territorial do Estado de Oaxaca, corresponde à da Hungria: 93 mil km2. No total, a América Latina representa uma área de 19 2000 000 km2, frente aos 10 180 000 km2 da Europa. E por que razão estes números são relevantes? Porque nestes territórios habitam 641 milhões de pessoas, o que representa 8.5% do total da população mundial, sendo que a grande maioria tem idade inferior a 25 anos, o que representa um importante potencial humano. Espera-se que este boom demográfico continue, e, que em 2050, este universo atinga os 750 milhões de pessoas. Se atualmente os sistemas políticos latino-americanos se veem com sérias dificuldades em canalizar as reivindicações de uma sociedade insatisfeita, polarizada e fragmentada (Malamud e Núñez, 2021), mais complicada essa tarefa se tornará até 2050.
A extensão territorial impressiona, bem como a abundância de recursos estratégicos, bastante cobiçados internacionalmente. Estes países são ricos em minerais: desde o ferro (Minas Gerais, Brasil), cobre (Apurímac, Perú ou Atacama, Chile), lítio (Potosí, Bolívia) e ouro (Colômbia). Por outro lado, as grandes reservas de petróleo na Venezuela, Brasil ou México não passam despercebidas. É do desconhecimento da grande maioria das pessoas que os diamantes brasileiros reluzem nas lojas Swarovski no Dubai; que a loucura do abacate que invadiu a Europa, potenciou uma monocultura do mesmo na região mexicana de Michoacán, que, por sua vez, é controlada pelo crime organizado; ou até mesmo que a soja brasileira alimenta os frangos em solo europeu que, eventualmente, se tornarão nuggets do McDonald’s (Robinson, 2020). Assim sendo, não é de espantar que o Brasil e o México se encontrem entre as 20 economias mais bem-sucedidas do mundo (Silva, 2020).
A abundância destes recursos estratégicos não passou despercebida aos EUA. A partir de 1900, a América Latina passou a constituir um interesse primário na sua política externa. Por estes motivos, a América Latina é deste muito cedo “America’s Bakyard”, facto que preconizou um século XX bastante conturbado para a mesma, nas palavras de Grace Livingstone (2009). Mais recentemente, tem sido palco da competição China-EUA. Esta situação tem contribuído para uma quebra de coesão regional, já difícil, dado as diferentes opções de política externa de cada Estado, dos distintos modelos de democracia, regimes produtivos, sociedades e prioridades internas (Lima, 2013).
Concluída esta leitura positiva das potencialidades que a América Latina, é inevitável olhar para os desafios, já mencionados anteriormente. Segundo o Statistical Yearbook for Latin America and the Caribbean 2020, o número de pessoas em situação de pobreza atingiu, em 2019, 30.5% do total da população. Em questões de igualdade de género, a proporção de postos ocupados por mulheres nos respetivos parlamentos nacionais é de apenas 32.9%. Por outro lado, as migrações intrarregionais acontecem em massa e, segundo a OIM, o volume das migrações Sul-Sul já é superior ao das migrações Sul-Norte (Elhajji, 2021). Finalmente, os direitos povos indígenas não têm sido prioridade, embora já se tenham registado avanços. Já no plano económico, a taxa de crescimento anual do PIB (total) foi negativa, num total de -7.7% em 2020, sendo que estes países continuam a revelar uma grande dependência da exportação de commodities (Robinson, 2020). A economia informal é muito representativa e a agenda ambiental, à semelhança do que acontece no resto do mundo, não tem sido articulada com o crescimento económico. Qual a resposta que pode ser dada a estes desafios? A resposta a esta pergunta não é linear e pode suscitar várias leituras.
Desde inícios deste ano de 2021, que, quer na academia, quer no campo institucional, se discute a necessidade de repensar o multilateralismo e do relançamento das relações transatlânticas. Posto isto, o Atlântico Sul, que abarca (não só) a América Latina, não deverá ficar para trás. Este pode ser o impulso necessário para que estes Estados unam as suas vozes e interesses nacionais e acordem o regionalismo latino-americano, adormecido e extremamente sujeito à volatilidade dos diversos ciclos políticos e alinhamento ideológico dos chefes de estado. As diversas organizações regionais existentes na América Latina, desde o Mercosul (1991), Unasul (2008), CELAC (2010) podem ser fóruns estratégicos para encontrar mecanismos de ação coletiva comuns e defender interesses dos diferentes Estados latino-americanos. Contudo, essa convergência parece estar difícil de alcançar durante este último ano de pandemia, reforçando as tendências centrífugas que já se vinham a verificar.
Em suma, a América Latina compreende um espaço muito heterogéneo composto por 20 países com passados e realidades sociais, culturais, políticas muito distintas que nos são, inclusive, difíceis de absorver dada a sua complexidade. Nas últimas décadas experienciou progressos na melhoria de diversos indicadores sociais e económicos, embora persistam vários problemas estruturais. Na ausência de uma liderança forte na América Latina e dos (des)alinhamentos político-ideológicos dos Estados, a convergência regional e a consequente criação de agendas comuns para responder aos diversos problemas estruturais, tornam-se difíceis. Contudo, esta é necessária para que o espaço latino-americano consiga ampliar a sua imagem internacionalmente e, finalmente, consolidar a sua posição no Sistema Internacional. Cabe ao espaço transatlântico (norte e sul) relançar a aliança, inclusive no imaginário dos povos latino-americanos.
Bárbara Teles
Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais
NOVA-FCSH
Bibliografia
Alencar, L. (2016). Mapa compara o tamanho dos estados brasileiros à extensão de outros países. Revista Galileu. https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/Urbanidade/noticia/2016/04/mapa-compara-o-tamanho-dos-estados-brasileiros-extensao-de-outros-paises.html
Bethell, L. (2010). Brazil and ‘Latin America’. Journal of Latin American Studies, 42(3), 457-485. doi:10.1017/S0022216X1000088X
Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), (2021). Anuario Estadístico de América Latina y el Caribe, 2020 (LC/PUB.2021/1-P). Santiago. Disponível em: https://www.cepal.org/es/publicaciones/46739-anuario-estadistico-america-latina-caribe-2020-statistical-yearbook-latin
Elhajji, M. (2021). Sudamérica: um espácio migratório “casi perfecto” [Consultado a 04/04/2021]. Disponível em: https://latinoamerica21.com/es/sudamerica-un-espacio-migratorio-casi-perfecto/
Lima, M. (2013). Relações interamericanas: a nova agenda sul-americana e o Brasil. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, (90), 167-201. https://doi.org/10.1590/S0102-64452013000300007
Livingstone, G. (2009). America’s Backyard: The United States and Latin America from the Monroe Doctrine to the War on Terror. New York: Zed Books Ltd.
Malamud, C., & Núñez, R. (2021). La democracia latinoamericana tras un año de
pandemia [Consultado a 05/04/2021]. Disponível em: http://www.realinstitutoelcano.org/wps/portal/rielcano_es/contenido?WCM_GLOBAL_CONTEXT=/elcano/elcano_es/zonas_es/ari42-2021-malamud-nunez-democracia-latinoamericana-tras-un-ano-de-pandemia
Nolte, D. (2020). Efeitos colaterais da Covid sobre a integração latino-americana. Folha de S. Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/12/efeitos-colaterais-da-covid-sobre-a-integracao-latino-americana.shtml
Robinson, A. (2020). Oro, petróleo y aguacates: Las Nuevas venas abiertas de América Latina. Barcelona: Arpa & Alfil Editores, S. L.
Silva, A. S. (2020). Novos contributos para a Política Europeia e Externa de Portugal. Lisboa: Tinta da China Edições.