Afeganistão: O projeto de reconstrução falhado dos EUA?

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“On my order the United States military has begun strikes against Al Qaeda terrorist training camps and military installations of the Taliban regime in Afghanistan.” (The Washington Post, 2001) 

Naquele domingo, 7 de Outubro de 2001, menos de um mês depois dos ataques terroristas de 11 de Setembro, estas foram as palavras proferidas por George W. Bush para anunciar que o próximo destino das tropas norte-americanas seria o Afeganistão, numa missão denominada Operation Enduring Freendom [Operação Liberdade Duradoura] (Hybel, 2014) e que assinalava a retórica daquela que passaria a ser a política externa norte-americana para o Médio Oriente: a de “Guerra contra o Terror”, numa lógica de legítima defesa preventiva, que contraria a legalidade internacional (Silva & Rosa, 2015). 

Os objetivos da missão eram claros: combater a Al-Qaeda, o grupo islâmico radical responsável pelos atentados, e aniquilar os Talibãs, fundamentalistas islâmicos que na altura governavam o Afeganistão e que decidiram proteger Osama Bin Laden – líder da Al-Qaeda – ao recusarem-se a entregá-lo ao governo norte-americano (Hybel, 2014).  Assim, naquele mesmo dia, os EUA, lançaram os primeiros ataques aéreos contra as instalações militares dos Talibãs e contra os campos de treino da Al-Qaeda no Afeganistão. 

A Operação Enduring Freedom foi traçada para se desenvolver em quatro fases. Numa primeira instância, as Forças Especiais e a CIA deveriam certificar-se de que havia condições para as tropas militares ocuparem o território afegão. Depois, os EUA iniciariam uma campanha de ataques aéreos intensiva para derrotar a Al-Qaeda e os Talibãs e enviariam, por via aérea, ajuda humanitária para os civis afegãos. A terceira fase passava pela ocupação das tropas terrestres norte-americanas e dos seus aliados no Afeganistão para, em conjunto com as forças militares afegãs, deter os membros restantes da Al-Qaeda e dos Talibãs. E, por fim, os EUA iniciariam um projeto de reconstrução no Afeganistão assente em dois propósitos: na estabilização do país e na construção de uma sociedade livre (Gregg II, 2017). 

As três primeiras etapas foram rapidamente concretizadas, 3 800 tropas norte-americanas tinham sido enviadas para o território afegão e, dentro de dois meses, as forças norte-americanas, com o apoio da Aliança do Norte Afegã, já tinham dominado grande parte do território a norte, incluindo cidades estratégicas como Mazar-e-Sharif e Cabul, forçando os Talibãs a refugiarem-se nas montanhas a Este, na região de Tora Bora, onde se desconfiava que Osama Bin Laden estaria a ser escondido. 

No início de Dezembro, o complexo de Tora Bora acaba por ser conquistado, mas Bin Laden e os restantes membros da Al-Qaeda e dos Talibãs conseguiram fugir para o Paquistão e, finalmente, no dia 9 do mesmo mês, os Talibãs renderam Kandahar e o líder do grupo, Mullah Oman, fugiu, assumindo, assim, a derrota do seu regime (Council on Foreign Relations, 2021). 

Perante isto, as três primeiras etapas do plano e um dos objetivos da Operação – derrubar os Talibãs – tinha sido cumprido e o outro – desmantelar a Al-Qaeda – estava em vias de se concretizar. No entanto, faltava agora materializar a última, e até aquela que seria a mais importante fase da missão e a que poderia validar o motivo da presença norte-americana no país: a de garantia de estabilidade e a salvaguarda de uma “liberdade duradoura” para o povo afegão, uma nação frágil dominada pelo medo e com um historial carregado de conflitos internos, guerras e mortes (Saliba, 2009). 

Embora, inicialmente, tenham sido feitos esforços para tal, nomeadamente com a Conferência em Bona – uma conferência realizada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas ao abrigo da Resolução 1378 que culminou com a assinatura do Acordo de Bona pelas principais fações afegãs e que definiu um plano de reestruturação política e de formação de um governo interino em Cabul encabeçado por Hamid Karzai (Council on Foreign Relations, 2021) – e, em Abril de 2002, George W. Bush, num discurso no Instituto Militar de Virginia, tenha chegado mesmo a firmar um compromisso em apoiar um processo de nation-building no Afeganistão (Miller, 2010), os EUA acabaram por se mostrar incoerentes perante este compromisso e pérfidos para com o povo afegão quando, sem sequer terem cumprido e consolidado a prometida “liberdade”, deram um passo atrás e colocaram o Afeganistão a um canto, desviando a sua atenção para o Iraque, deixando um vácuo no poder, o que abriu uma brecha para que os Talibãs se reorganizassem e voltassem a aterrorizar os afegãos. 

O regresso dos Talibãs veio acompanhado de mais violência e, desta vez, eles tinham mudado de estratégia: antes combatiam diretamente contra as forças militares norte-americanas, agora recorriam ao uso de explosivos e de ataque suicidas, o que aumentava substancialmente o número de baixas civis. Em 2008, os Talibãs já tinham conseguido reconquistar grande parte do território afegão, sobretudo a Sul e a Este (Council on Foreign Relations, 2021). 

Em 2009, quando Barack Obama assumiu a presidência, este volta a comprometer-se com a guerra no Afeganistão, enviando cerca de 100 mil soldados para o país e financiamento para apoiar o governo afegão formado e substitui a política de contra-terrorismo de Bush para uma estratégia de contra-insurgência e, pela primeira vez em oito anos, é definido um prazo para a presença norte-americana no Afeganistão: Obama define Julho de 2011 como o início do regresso das tropas americanas (Council on Foreign Relations, 2021). 

Contudo, apesar destas tentativas por parte de Obama, derrotar novamente os Talibãs não se apresentava como uma tarefa fácil: eles tinham angariado muito dinheiro com o tráfico de drogas, conseguindo mais armamento, e estavam a reconquistar cada vez mais território afegão, sobretudo a Sul e a Este (Council on Foreign Relations, 2021). Para além disto, Obama confiou demasiado num governo que se tinha tornado corrupto e disfuncional e delimitou prazos com datas irrealistas, definindo o fim de uma guerra que continuava ainda por terminar; portanto, tudo o que os Talibãs precisavam era esperar (Whitlock, 2019).  

Perante isto, começou a surgir um sentimento anti-americano, um sentimento de dúvida e desconfiança entre os afegãos em relação à intervenção norte-americana, pois não só a violência se tinha agravado substancialmente, como tinham um governo corrupto e as cada vez mais baixas civis tinham-se tornado apenas um “efeito colateral” para os americanos (Connah, 2021). 

Em Maio de 2011, Osama Bin Laden, o principal inimigo dos EUA e o principal motivo por detrás de dez anos de guerra, é morto e no mês seguinte Obama anuncia o regresso a casa de 10 mil tropas até ao fim do ano e de 33 mil até ao Verão de 2012 e declara que os EUA deixariam de ser responsáveis pela garantia de segurança no Afeganistão e que tal responsabilidade passaria a ser das forças militares afegãs e que, portanto, a missão norte-americana já não era de combate, mas de apoio (Council on Foreign Relations, 2021). 

Em Maio de 2014, Obama volta a anunciar o retiro das restantes tropas até 2016, mas comunica que 9 800 soldados iriam permanecer no Afeganistão para treinar as Forças militares afegãs e conduzir operações apenas contra os membros remanescentes da Al-Qaeda (Council on Foreign Relations, 2021). 

Em 2017, os Talibãs controlavam quase metade do território afegão – mais território do que em 2001 quando os EUA iniciaram a sua intervenção – e estavam mais fortes do que nunca e a guerra era descrita pelos soldados norte-americanos como um “beco sem saída” (Council on Foreign Relations, 2021). 

Agora, vinte anos depois de estadia em terra estrangeira, todos os soldados americanos regressam a  casa até 11 de Setembro de 2021, como anunciado pelo Presidente Joe Biden (Cooper, Barnes, & Gibbons-Neff, 2021). 

Perante isto, podemos perguntar: o que mudou para o Afeganistão durante estas duas décadas? (Quase) Nada. Os americanos falharam para com o povo afegão. O projeto de reconstrução transformou-se num projeto de violência e destruição. O Afeganistão é hoje o país com o maior número de mortes causadas por terrorismo (Connah, 2021). Muito pouco foi feito pelo povo afegão, a liberdade duradoura nunca se tornou numa realidade. Os Talibãs estão mais fortes do que nunca, controlam 52% do território afegão e têm os meios para continuar a aterrorizar o país (Erfanyar, 2021).  

Para além disto, a falta de estratégia e de conhecimento acerca do país com que os americanos foram para o Afeganistão, nomeadamente apoiarem um governo corrupto cujas reformas não passavam dos limites de Cabul e tentarem impor um processo de nation-building num país que sempre foi divido em vários grupos étnicos e que operam autonomamente e regionalmente, denotam também a falta de compromisso que os EUA tinham a priori em garantir paz para os afegãos (Bennis, 2021).

Destes 20 anos, podemos concluir que os EUA, autoproclamados como transmissores da liberdade, têm prioridades, mas a salvaguarda dos direitos humanos e da democracia não estão entre elas, pois, numa altura crucial, em que se deveriam ter focado em construir bases para a estabilização do Afeganistão, os norte-americanos faltaram ao seu compromisso e, ambicionando a busca do seus próprios interesses,  invadiram o Iraque, deixando o Afeganistão para depois e permitindo que as consequência desta decisão trouxesse muito mais violência e morte para um país que não conhece outra realidade. 

Melissa Peli
Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais

NOVA-FCSH

Referências

Bennis, P. (2021, April 15). What Does Biden’s Decision to Withdraw From Afghanistan Mean? https://www.thenation.com/article/world/end-war-afghanistan-biden/

Connah, L. (2021). US intervention in Afghanistan: Justifying the Unjustifiable? South Asia Research, 41, 70–86. https://doi.org/10.1177/0262728020964609

Cooper, H., Barnes, J. E., & Gibbons-Neff, T. (2021, April 13). Biden to announce full withdrawal of U.S. troops in Afghanistan by Sept. 11. The New York Times. https://www.nytimes.com/2021/04/13/us/politics/afghanistan-troops-withdrawal.html?searchResultPosition=37

Council on Foreign Relations. (2021, April 14). A Timeline of the U.S. War in Afghanistan (Z. Laub & L. Maizland, Eds.). Council on Foreign Relations. https://www.cfr.org/timeline/us-war-afghanistan

Erfanyar, A. (2021, February 12). Govt, Taliban make exaggerated claims of territory they control. Pajhwok Afghan News. https://pajhwok.com/2021/02/12/govt-taliban-make-exaggerated-claims-of-territory-they-control/

Gregg II, G. L. (2017, July 10). George W. Bush: Foreign Affairs | Miller Center. Miller Center. https://millercenter.org/president/gwbush/foreign-affairs

Hybel, A. R. (2014). George W. Bush and the Afghan and Iraq Wars. US Foreign Policy Decision-Making from Kennedy to Obama, 115–156. https://doi.org/10.1057/9781137397690_5

Miller, P. D. (2010). Bush on Nation Building and Afghanistan. Foreign Policy. https://foreignpolicy.com/2010/11/17/bush-on-nation-building-and-afghanistan/

Saliba, M. (2009). O Terrorismo Combatido com Terror. A guerra no Afeganistão e seu reflexo nas políticas internacionais. Revista Eletrônica de Direito Internacional, 387–416.

Silva, C., & Rosa, P. (2015). ATUAÇÃO DOS EUA PÓS 11 DE SETEMBRO DE 2001: LEGÍTIMA DEFESA OU AGRESSÃO ILEGÍTIMA? Rev. Fac. Direito UFMG, 105.

The Washington Post. (2001). Bush Announces Strikes Against Taliban. https://www.washingtonpost.com/wp-srv/nation/specials/attacked/transcripts/bushaddress_100801.htm

 

Whitlock, C. (2019, December 9). STRANDED WITHOUT A STRATEGY. The Washington Post. https://www.washingtonpost.com/graphics/2019/investigations/afghanistan-papers/afghanistan-war-strategy/