A resistência esquecida: a luta das mulheres antifascistas

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Desde cedo, muito antes de conseguirmos compreender o significado, ouvimos falar do 25 de abril, da luta contra o fascismo em Portugal e no mundo, na vizinha Espanha e um pouco por todo o mundo. É com memória desoladora que tantos de nós crescemos a ouvir os mais velhos falar “do tempo do Salazar”, aquele em que pouco havia e muito se sofria, desde as memórias da fome, à guerra colonial. 

Ouvimos desde cedo falar dos capitães de abril, homens da Revolução dos Cravos que puseram fim aos 41 anos do regime do Estado Novo. Sabemos ainda dos milhares de presos e torturados nas paredes das prisões e campos de concentração do fascismo, dos milhares que da guerra não voltaram, e – ainda que não o suficiente – das ínfimas pessoas massacradas pelo regime nas ex-colónias (Pimentel, 2011). Sabemos até o nome de uma ou outra pessoa incontornável para a luta pela democracia – desde artistas como Zeca Afonso, a políticos como Álvaro Cunhal. 

Parece ser relevante fazer o exercício mental de pensar em mulheres que tiveram um papel crucial, mais ou menos na linha da frente e de protagonismo, na luta contra o fascismo em Portugal e no resto do mundo. Menos conhecidos que os acima, são os nomes das mulheres que ficaram para a história do feminismo antifascista português, como Maria Lamas, que foi presa, torturada e viu-se obrigada a exilar-se; ou as ‘Três Marias’, julgadas pela obra censurada ‘Novas Cartas Portuguesas’ (Batista, 2017). 

Muito menos sabemos da luta de mulheres militantes comunistas como Conceição Matos, Fernanda Tomás ou mesmo Catarina Eufémia, sendo que atividade clandestina de Eufémia acabou quando foi assassinada numa greve em que ceifeiras reivindicavam melhores condições de trabalho (Samara, 2021). Pouco destaque se dá a mulheres como Maria Custódia Chibante, torturada nas prisões do fascismo, Isabel Aboim Inglês, Julieta Gandra, entre as 1755 mulheres que estiveram nas cadeias do fascismo português (Cova e Costa Pinto, 1997). Compreende-se, então, que o papel subalterno das mulheres nas sociedades traduz-se (também) na subalternização das suas conquistas e lutas – desde a escala à relevância. 

As demais perspetivas feministas nas ciências sociais têm precisamente alertado para essas evidencias e trabalhado no sentido de trazer uma perspetiva de género à forma como compreendemos os fenómenos, a história e, de maneira geral, o mundo que nos rodeia e do qual fazemos parte (Campbell, 2001). 

É precisamente neste caminho contra o esquecimento ou mesmo o apagamento das mulheres da história, que é relevante olhar para o papel das mesmas na política e nas transformações da sociedade ao longo do tempo. Hoje cada vez mais se exige a presença de mulheres em posições de poder, na política institucional e nos movimentos sociais. Contudo, o mesmo só é possível – ou vai sendo possível – graças aos movimentos feministas na luta pelo não-apagamento das ínfimas mulheres cujo nome a história abafou. 

Nos últimos anos, assistimos ao ressurgimento de movimentos reacionários, de extrema-direita e mesmo (neo) nazis em todo o mundo – cenário que relembra aquele de há um século atrás – com movimentos que não foram extintos, mas sim forçados a parecerem adormecidos. Este ressurgimento não se verifica só no estabelecimento de grupos que ganham todos os dias proeminência como o Batalhão Azov, mas também na eleição de políticos como Recep Erdogan e Donald Trump (Mojab e Carpenter, 2020). 

É importante também ressalvar que estes movimentos e figuras políticas não surgiram por mero acaso e que os seus discursos não foram popularizados apenas pela retórica que utilizam. As décadas de brutais políticas neoliberais, os retrocessos ou falta de avanços nos direitos e condições materiais de vida para a esmagadora maioria da população intensificaram a luta de classes, na contradição dialética entre capital e trabalho. A isto alia-se a ideologia profundamente individualista neoliberal e as crises cíclicas do capitalismo, que potenciam discursos e aproximações ao fascismo, na antagonização das minorias, ao mesmo passo que a expansão imperialista se torna mais violenta, com o aval dos estados, na proteção dos interesses da classe dominante (Harvey, 2005).

O ressurgimento da extrema-direita, do (neo) fascismo tem, como teve no passado, encontrado uma grande e organizada resistência. Na linha da frente e no backstage dessa resistência têm estado as mulheres dos quatro cantos do mundo, cuja luta parece incansável (Richet, 2016). 

Exemplo recente disto mesmo foi o enorme movimento Ele Não, que moveu milhares de mulheres brasileiras para se manifestarem e marcharem juntas contra a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018 (Barros e Santos Silva, 2019). Candidato do liberalismo económico e ultraconservadorismo, Bolsonaro encontrou uma resistência organizada de mulheres por todo o Brasil e nas comunidades emigrantes espalhadas pelo mundo, na mobilização – que não acabou – contra as políticas fundamentalistas e reacionárias que policiam os corpos das mulheres e as afetam desproporcionalmente (Chagas, 2022). 

A história não tem senão exemplos de mulheres que se organizaram na luta pela democracia, pela igualdade e justiça social, pelos direitos humanos e pelo fim de todas as opressões no contexto de regimes fascistas ou protofascistas, em todos os lugares do mundo. 

É possível verificar que do Chile de Pinochet à Alemanha nazi, o papel das mulheres na luta antifascista foi de extrema importância, não vindo só de coletivos de mulheres já organizados e que tinham já uma história de reivindicação e contestação perante o poder político e económico, como também de largas mobilizações de mulheres previamente despolitizadas ou que não se encontravam organizadas. Na resistência italiana as partigianas trabalharam incansavelmente em todas as frentes, dos combates à prestação de cuidados, passando por todas as ações de militância clandestinas. Militantes como Irma Bandiera, que transportava armas para a resistência, entre tantas outras, acabaram por ser presas, torturadas e assassinadas pelo regime (Goretti, 2012). 

O mesmo se passou na Alemanha e nos países ocupados pelas forças nazis, onde o papel da resistência das mulheres é pouco lembrado. O mesmo passou por mulheres que derrotaram tropas, como é o caso de Madaleine Riffaud ou Hilde Radusch e Frieda Belinfante, que ajudavam a falsificar documentos e esconder pessoas que se escondiam das forças nazis. Mulheres organizaram-se e fizeram protestos como os de Rosenstrasse, nos quais participaram as esposas e familiares de homens judeus, que protestavam sua a deportação, reivindicando a libertação dos mesmos pela Gestapo (Buck, 2017). A mesma ação coletiva acontecia dentro dos campos de concentração, como foi o caso de Ala Gertner, que fazia trabalho escravo numa fábrica de munições nazis e conseguia roubar pólvora, que passava a Roza Robota, que por sua a vez a passava clandestinamente para Auschwitz para a construção de granadas. As duas mulheres, juntamente com Estusia Wajcblum e Regina Safirsztajn, foram enforcadas em frente às outras prisioneiras no campo de concentração pelas suas atividades de resistência (Wollaston, 2014). Eterniza-se a sua luta e as últimas palavras de Robota para as outras prisioneiras “Sejam fortes e corajosas” (Elhassan, 2020). 

 

Do outro lado do Atlântico, foi incansável a luta antifascista das mulheres brasileiras, tantas vezes esquecidas, como Beatriz Bandeira, Nise da Silveira, Eugênia Moreyra, Eneida de Moraes e Olga Benário. Importantes militantes comunistas, estas mulheres juntamente com tantas outras lutaram ativamente contra o Estado Novo de Getúlio Vargas, tendo sido presas e torturadas. O nome de Olga Benário é talvez o mais lembrado destes, tendo sido deportada para a Alemanha nazi e assassinada numa câmara de gás (Vianna, 2013). Não muito longe, poucas décadas mais tarde durante o regime de Pinochet, no Chile, mulheres organizaram-se por todo o país reivindicando a democracia, direitos humanos, maior equidade económica e igualdade de género, sob o slogan “Democracia no país e em casa” (Frohmann e Valdés, 1995).

 

Vários são os motivos que podem ser apontados para explicar a politização e participação na luta antifascista das mulheres, especialmente nas mulheres sem historial prévio de atividade política. Neste contexto, importa atentar ao papel remetido para as mulheres para o fascismo ideologicamente e naqueles que foram os regimes fascistas – e altamente autoritários – por todo o mundo. Ideologicamente ultraconservador, o fascismo supõe que o papel da mulher se reduza ao lar e à família, no papel de cuidadora, encarregue de todo o trabalho doméstico e reprodutivo. Já altamente restritos para a maior parte da população de um país sob um regime fascista, às mulheres são negados direitos e liberdades com base no género, pressupondo um papel passivo e de obediência – ao Estado e ao pai e ao marido (Passmore, 2003).

 

O mesmo é exemplificado pelo regime fascista do Estado Novo em Portugal, no qual as mulheres precisavam de autorização do pai ou marido para sair do país e não tinham acesso a carreiras como a magistratura (Cova e Costa Pinto, 1997).

 

É importante sublinhar ainda que a luta antifascista não começou, em lugar algum do mundo, apenas aquando da implementação dos regimes, pelo que houve sempre quem resistisse. Exemplo paradigmático disto mesmo foi o papel das mulheres trabalhadoras na luta contra as forças fascistas de Francisco Franco durante a Guerra Civil Espanhola. Mulheres espanholas e solidárias com a causa antifascista de todo o mundo, como Julia Sagredo, Libertad Rodenas e Georgette Kokoczinski, juntaram-se ao combate e às milícias anarquistas que lutaram ativamente contra os nacionalistas, até que foram proibidas de combater em 1937. Ainda assim, a resistência das mulheres não parou, pelo que as mesmas continuaram a ter um papel ativo no trabalho de base e de apoio, além do importante trabalho na escrita sobre o feminismo e condição da mulher, como o de Lola Iturbe. A mesma e várias mulheres como Mercedes Guillén e Maria Bruguera Pérez fundaram ainda, em 1936, a organização feminista e anarcossindicalista Mujeres Libres que tratava questões como a socialização do trabalho reprodutivo, a igualdade salarial, fazia campanhas de alfabetização de mulheres, contando ainda com um jornal no qual eram abordados temas relacionados com a emancipação feminina e a causa comunista (Hastings, 2016).

 

Em suma, a história demonstra não somente que as mulheres sempre estiveram na linha da frente no combate ao fascismo, mas também que lá estiveram nas demais lutas pelo progresso social e pela luta contra as opressões – desde movimentos contra guerras que dizimaram milhões, à segregação racial. É imperativo que não se apaguem da história e da memória coletiva as lutas passadas e um olhar atento às de hoje.

Marisa Ferreira
Mestranda em Economia Política

ISCTE-IUL

Bibliografia

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