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Durante décadas, a visão vestefaliana de Estados colocou a religião exclusivamente na esfera privada e longe da análise das Relações Internacionais (Solarz, 2020; Roussos, 2020). Apesar disso, a religião como elemento identitário e/ou cultural apresenta-se como fator crucial, já que estabelece a ética moral que rege as relações societais (Gopin, 2002).
A religião influencia as políticas nacional e internacional, quer com a delimitação de normas morais, quer com o aconselhamento político-social (Roussos, 2020). Por esse motivo, a politização da religião pode ser usada como arma para legitimar um fim: uma posição política (e.g. políticas anti LGBT+ polacas), o favorecimento de um candidato (e.g. eleição de Kennedy enquanto primeiro presidente norte-americano católico) ou a justificação para o processo de othering (e.g. Holocausto).
No caso do Médio Oriente esta influência é inegável, estando a religião presente na identidade estatal e nas políticas nacional e regional. Ora, à exceção da Turquia que se considera secular, os restantes países interligam a religião e a política para criar um regime of order. Este sistema político baseia-se, não numa democracia liberal, mas “…the merger of faith and law in the individual’s life.” (Roussos, 2020, p. 3). Assim, a aprovação religiosa é crucial na política e a lei governante é a religiosa – quer seja a Sharia (Lei Islâmica) ou a Halakha (Lei Judaica) (Solarz, 2020). Tal não invalida uma democratização, desde que esta seja para promover a religião (Roussos, 2020).
Os países de religião muçulmana, em concreto, reconhecem a soberania máxima de Allah através do Qu’ran (Alcorão) e da Sharia e colocam o islão no centro da vida. Como qualquer religião, o islão detém várias ordens religiosas: as principais ordens são as Sunni (Sunitas) e Shi’a (Xiitas) (Sedgwick, 2000), ainda que seja relevante mencionar também as ordens Ibāḍīyyah (Ibadi) e Sufi (Sufistas) (Peterson, 2022; Schimmel, 2019). Dentro destas Ordens existem denominações e sects, i.e., ramificações da mesma religião cujas crenças se distinguem entre si. Estas ordens diferem de dimensão, mas não de relevância, já que, apesar de seguirem o Qu’ran, diferem em interpretação e no enfoque que dão a áreas como o envolvimento da religião na política. Assim, apesar de se falar de religião muçulmana como uma, estamos a falar na realidade de crenças, práticas e vivências distintas que partilham entre si semelhanças e diferenças, e cuja identidade individual é relevante para o entendimento das dinâmicas políticas e societais.
No Islão, o objetivo é o alcance da Ummah, uma nação global que una a consciência e identidade islâmicas (Solarz, 2020). Esta Nação é reforçada por uma memória coletiva de tumultos e de dificuldades societais que estabeleceram um sentido de comunidade interligado com a identidade muçulmana. Na prática, a Ummah apresenta-se como uma ideologia com estruturas políticas, institucionais e económicas consideráveis (Roussos, 2020), podendo ser interpretada: de forma literal com a pretensão de expansão geopolítica ou de forma figurativa com a reconversão da ordem social global, i.e., a reformulação do quadro normativo internacional em função da visão muçulmana de desenvolvimento (Solarz, 2020).
A religião, de uma forma geral, influencia o decision-making, enquanto meio de reconciliação e cooperação ou forma de cisão e conflito (Keiswetter & Bishop John Chane, 2013). Assim, importa analisar: será a religião muçulmana instigadora apenas de conflito e não de cooperação?
Ora, assumindo que o Islão instiga conflito, a religião apresenta-se como fator desestabilizador da sociedade e resulta na ausência de política (Solarz, 2020), como é visível nas famosas “Guerras Religiosas”. O fundamentalismo islâmico, personificado recentemente na criação do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS), apresenta-se como uma das maiores ameaças do Médio Oriente, por defender uma interpretação literal da jihad menor, i.e., a expansão religiosa para territórios infiéis como forma de proteger a fé (Almeida e Silva, 2014).
Assim, o conflito, influenciado pela religião, baseia-se na premissa de othering, na perceção dos infiéis como ameaça à ordem. Ora, a demonização dos infiéis cria insegurança e instiga atitudes beligerantes em ambas as frentes – fiéis ou infiéis, seja eles quais forem (Gopin, 2002). Esta segregação promove uma política do medo e leva ao fundamentalismo religioso – conservador, intolerante e rigoroso –, em expansão nas várias religiões monoteístas. Esta linha discursiva é promovida ainda pela necessidade de pertença a uma Comunidade, já que, para além de uma crença e característica individual, a religião torna-se cada vez mais um fator identitário e definidor de Comunidade (Keiswetter & Bishop John Chane, 2013). Assim, os processos de othering e das visões fundamentalistas nada passam de uma politização da religião por atores, e dizem mais da intolerância religiosa do que das suas premissas ontológicas (Gopin, 2002).
Por esse motivo, a visão da religião como violenta, errática e terrorista parece a resposta simplista para qualquer conflito no Médio Oriente. Na realidade, ainda que seja inegável a influência religiosa, é crucial uma análise substancialmente mais profunda, tendo em conta questões de classe, etnia, geopolíticas, entre outros.
Se assumirmos, por outro lado, o islão como promotor de diplomacia ou cooperação, a religião torna-se parte da solução para o Médio Oriente. Se analisarmos o objetivo da Jihad Maior, este é de uma luta espiritual em prol do crescimento individual dos fiéis, o que, em última instância, repercute em melhorias societais (Almeida e Silva, 2014) e, por isso, pode ser entendida como uma máxima para praticar o bem. Aliás, uma das interpretações do Qur’an defende que “…God has created the world into nations and tribes so that humankind can know one another…” (Keiswetter & Bishop John Chane, 2013, p. 30), estando subentendida a convivência da diversidade com o objetivo de bem comum.
Portanto, apesar de menos divulgadas, existem casos em que a religião muçulmana funcionou como propulsor de diálogo e cooperação, salientando-se:
(1) A premissa do “Diálogo entre Civilizações”, proposto no livro Dialogue Among Civilizations por Khatami (2001), Chefe de Estado do Irão (1979-87), como resposta à teoria do Choque de Civilizações de Huntington. Khatami pretendia criar bases para uma aproximação das várias religiões e nações em prol do respeito mútuo e do reconhecimento da soberania nacional. Estes valores culminaram, em 1999, na Tehran Declaration on Dialogue among Civilizations promovida pela UNESCO e aceite por vários Estados muçulmanos, existindo diversas Conferências em países por todo o mundo. Nesta sequência, apesar dos ataques de 9/11, a Assembleia Geral das Nações Unidas aceitou definir 2011 como o Ano do Diálogo entre Civilizações (Keiswetter & Bishop John Chane, 2013; Solhar, 2020).
(2) A criação da Organization of Islamic Cooperation (OIC) fundada em 1977. Esta representa a única instituição intergovernamental fundada e baseada na religião, com o objetivo de materializar a Ummah na sua definição moderada, i.e. de aproximar todos os muçulmanos. A OIC corresponde a um organismo intercontinental que aconselha entidades internacionais com soluções religiosas pacíficas (Solarz, 2020). Atualmente, o seu plano de trabalhos prioriza temas como paz e segurança, contraterrorismo, empoderamento feminino e harmonia inter-religião (OIC, s.d.).
Conclui-se, portanto, ser possível a cooperação religiosa e a instrumentalização da religião para fins que não a guerra. Assim, a religião enquanto instrumento político não passa de uma arma que pode ser utilizada e aplicada para o fim mais conveniente ao decision-maker.
Dadas as tensões históricas do Médio Oriente e a influência da religião na definição do Outro, a abertura religiosa é crucial. Apesar de existir uma cisão considerável entre as três grandes religiões monoteístas, existem pontos de convergência, com foco na visão espiritual e moral (Gopin, 2002). Aliás, apesar das críticas que podem ser apresentadas à eficácia da OIC, esta conseguiu englobar tanto Arábia Saudita e Irão, países conhecidos pelo seu historial conflituoso, e juntá-los numa entidade em prol de valores comuns. A solução não passa, portanto, pela intervenção externa, mas sim da aproximação dos pontos de convergência espirituais e morais entre as várias religiões, por forma a gerar diálogo efetivo e promover o respeito pela diferença étnica, religiosa e de classe (Keiswetter & Bishop John Chane, 2013).
Ainda assim, e reconhecendo os danos históricos na memória coletiva, é igualmente importante a reconciliação e reparação dos danos da guerra e a instrução das crenças comuns inter-religiosas (Gopin, 2002). Apesar da abertura relativa ao diálogo, continua a não existir um esforço para a reparação dos danos de guerra, necessários para apaziguar a memória coletiva. Sem este passo, o diálogo só obtém resultados relativos, ainda que não menos relevantes.
Ao nível discursivo, enquanto existir uma cisão entre a boa religião e a má religião, esta divisão criará espaço para um maior crescimento do fundamentalismo. Ora, é inegável atualmente a politização da religião muçulmana e a sua influência na morte, destruição e no conflito; no entanto, a islamofobia funciona como promotora deste mesmo conflito, silenciando as vozes de coexistência.
A islamofobia, tal como o fundamentalismo religioso, instiga a política do medo e aumenta divisões sociais, regionais e até internacionais. É importante por isso deixar de se analisar os fundamentalistas muçulmanos como espelho do Islão, da mesma forma que não se espelha a Santa Inquisição como retrato dos cristãos. Assim, quando se analisa o impacto da religião, o foco não deve ser a legitimidade da religião enquanto identidade ou cultura, mas sim a análise da sua implementação e das pretensões dos que a utilizam com um fim político.
Mónica Correia
Mestranda em Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo
NOVA-FCSH
Bibliografia
Almeida e Silva, T. (2014). JIHAD. Em: Enciclopédia das Relações Internacionais. Alfragide: D. Quixote. pp. 278-279
Gopin, M. (2002). Holy War, Holy Peace: How Religion Can Bring Peace to the Middle East. Oxford University Press.
Keiswetter, A. & Bishop John Chane. (2013). Diplomacy and Religion: Seeking Common Interests and Engagement in a Dynamically Changing and Turbulent World. The Brookings Project on U.S. Relations with the Islamic World U.S.-Islamic World Forum Papers 2013, 29.
Khatami, M. (2001). Dialogue among civilizations: A paradigm for peace. University of Pretoria, Faculty of Science.
OIC. (s.d.). History. https://www.oic-oci.org/page/?p_id=52&p_ref=26&lan=en
Peterson, J. E. (2022, Janeiro). Oman—Plant and animal life | Britannica. Britannica. https://www.britannica.com/place/Oman/Plant-and-animal-life
Roussos, S. (2020). Introduction—Issues and Debates on Religion and International Relations in the Middle East. Em S. Roussos (Ed.), Religion and International Relations in the Middle East (Vol. 11). MDPI; 10.3390/rel11050263. https://www.mdpi.com/books/pdfview/book/2563
Schimmel, A. (2019). Sufism—Sufi orders | Britannica. https://www.britannica.com/topic/Sufism/Sufi-orders
Sedgwick, M. (2000). Sects in the Islamic World1. Nova Religio: The Journal of Alternative and Emergent Religions, 3(2), 195–240. https://doi.org/10.1525/nr.2000.3.2.195
Solarz, A. M. (2020). Religion and International Relations in the Middle East as a Challenge for International Relations (IR) Studies. Em S. Roussos (Ed.), Religion and International Relations in the Middle East (Vol. 11). MDPI; 10.3390/rel11030150. https://www.mdpi.com/books/pdfview/book/2563