A política externa da nova administração Biden: Promessas e Perigos

As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.

“It’s a new day for America”, escreveu Joe Biden no Twitter no dia da sua tomada de posse. De facto, não é só um novo dia para os Estados Unidos da América, mas também para o mundo. A eleição de Biden representa um regresso ao establishment da política externa norte-americana que, apesar de criticável, é sempre melhor que a política externa desastrosa do mandato Trump. Não cabe aqui uma análise da mesma, ela é feita magistralmente pelo Tomás Infante noutro lugar, mas podemos assinalar alguns momentos particularmente infelizes. 

Em primeiro lugar, assistimos a uma enorme destabilização do Médio Oriente com a mudança da embaixada americana em Israel para Jerusalém, o abandono dos curdos na fronteira entre a Turquia e a Síria (grupo importante no combate ao terrorismo) e a apresentação do patético ‘Plano Kushner’ para resolver a disputa israelo-palestiniana, que desconsiderou absolutamente o lado palestiniano. A cereja no topo do bolo foi a saída do acordo nuclear com o Irão, que até então tinha sido eficaz a prevenir a expansão nuclear deste país, e o assassinato de Qassem Soleimani, que só provocou o Irão e comprometeu ainda mais a estabilidade na região. Em segundo lugar, vimos também a postura anti-multilateral de bullying aos aliados, saída de importantes organizações internacionais (OMS) e fuga a responsabilidades internacionais (retirada do Acordo de Paris) essenciais para o presente e futuro da humanidade. Em terceiro lugar, sublinho a securitização e hostilização da China corporizadas numa retórica agressiva quasi-containment à la Guerra Fria e numa disparatada guerra comercial, que só veio aumentar a probabilidade de um conflito que todos querem evitar.

Os que partilham desta avaliação certamente saudarão como eu a eleição de Biden, pois representa um regresso a uma normalidade na política externa que, apesar de imperfeita, será melhor e mais racional que a abordagem irresponsável e disparatada de Trump. No entanto, é necessário temperar o nosso otimismo com alguma moderação. Com Biden, existem ainda alguns erros e riscos que as três décadas de internacionalismo liberal nos indiciam. É precisamente sobre isso que refletirei nesta espécie de antevisão crítica à política externa da administração que ontem tomou posse.

Comecemos pelo mais positivo. Biden vai restaurar o acordo nuclear com o Irão por forma a impedir a aquisição de capacidades nucleares deste país e terminará com o apoio ao conflito entre a Arábia Saudita e o Iémen. O agora Presidente apresenta um forte compromisso com o multilateralismo, o que é fundamental se considerarmos que um sistema de governança global nele assente é promotor da paz, da contenção do exercício arbitrário de poder e de resolução de problemas coletivos. A este respeito, Biden anunciou o regresso ao Acordo de Paris e é fundamental que a maior potência mundial se comprometa na resolução da questão climática – veremos se assim será realmente. 

Por outro lado, a agenda Biden recupera alguns elementos ‘mais do mesmo’ que são sem dúvida problemáticos. Esta administração continuará o apoio a Israel e não reverterá a desrespeitosa mudança da embaixada dos EUA para Jerusalém, o que promete arrastar mais ainda a resolução da disputa israelo-palestiniana. 

Biden continuará a política agressiva contra a China, tendo inclusivamente dito que não planeia terminar com a guerra comercial em breve. É certo que existe um consenso bipartidário sobre esta estratégia em relação à China, mas ela é errada do meu ponto de vista. Esta proposta parte do pressuposto errado de que a política para a China no pós-Guerra Fria falhou – é precisamente o contrário (Zakaria, 2020). A China tem-se integrado em grande medida na ordem internacional liberal e obedecido às suas regras:

China […] has moved from a position of almost no participation in international regimes to the current position in which it participates in almost all of the major international regimes(Nathan, 2016)

Ao contrário dos EUA, a China não entra em conflito desde 1979. A sua militarização do Mar do Sul da China, apesar de agressiva e contrária ao Direito Internacional, nunca ultrapassou o limite da agressão (Mazarr et al., 2018). A China tem sido um país pacífico e respeitador, em larga medida, das regras internacionais em virtude da sua integração na ordem internacional. Tendo isto em conta, não se percebe o motivo de se hostilizar a China como se de um perigoso Estado revisionista se tratasse em vez de se procurar integrar mais a China para se tornar num ator ainda mais responsável.

Os EUA de Biden, como nas outras administrações anteriores, teimam em recusar a evidência do declínio americano e o facto de que o sistema internacional caminha para a multipolaridade, admitidos até pelos mais empedernidos realistas (Mearsheimer, 2019). O que as sucessivas administrações norte-americanas, onde se inclui a de Biden, não compreendem é que a China e outras potências não querem substituir a ordem internacional, mas sim torná-la mais igualitária, justa e congruente com os seus interesses e preferências normativas (Zhao, 2018). A ordem internacional permanece ainda dominada pelo Ocidente e pelos EUA, que acumula privilégios desproporcionais nas suas principais instituições (Acharya, 2018). Num cenário em que os países do global south são cada vez mais ricos e poderosos, é natural que desejem ter maior voz na ordem. No entanto, não há uma palavra de Biden sobre a reforma da governança global para dar mais poder a estes países.

Em vez disso, Biden ressuscita os velhos mantras de promoção de democracia e dos direitos humanos, da militarização e da renovação das alianças democráticas no Atlântico e na Ásia – é o regresso do internacionalismo liberal. Basta olharmos para o passado para perceber o quão perniciosa é esta mentalidade. Vejamos a invasão do Iraque sob falsos pretextos que gerou uma enorme crise humanitária e a intervenção na Líbia que, ao promover a mudança do regime, atirou o país para uma guerra civil interminável (Kuperman, 2013). Os EUA não devem regressar a estas políticas de imposição da democracia e dos direitos humanos, que têm diminuído drasticamente a legitimidade do país. Esta é a principal cisão entre os EUA e os países do Global South, muitos com regimes autoritários, que querem ver a sua soberania e independência respeitadas. Muitos destes Estados emergiram de experiências coloniais, tendo um passado traumático de interferência ocidental violenta. 

Assegurar a ascensão pacífica destes países, entre os quais a China e a Rússia, é acomodar os seus interesses e preferências normativas. Num sistema internacional em que o Ocidente está a perder poder rapidamente em favor do Global South, é impreterível uma reforma da ordem internacional que dê mais poder e voz a estes países, caso contrário ela não conseguirá preservar o seu apoio. A administração Biden parece ignorar isto, querendo preservar o excecionalismo norte-americano e os aventurismos liberais. 

A maior potência do mundo depara-se com duas grandes opções: (i) manutenção dos privilégios americanos e ocidentais, o que implicará a restrição da ordem à comunidade democrática e a alienação do resto do mundo; (ii) renegociação da ordem por forma a torná-la mais compatível com o poder, interesses e preferências normativas dos países não-ocidentais. Se queremos um mundo mais pacífico e justo, precisamos de uma ordem internacional menos hierárquica e menos liberal. Biden parece dirigir-se para o caminho oposto.

Diogo Machado
Aluno na Licenciatura de Ciência Política e Relações Internacionais

NOVA-FCSH

Referências

Acharya, A. (2018). The End of American World Order (2nd Edition). Polity Press.

Biden, J. (2019). THE POWER OF AMERICA’S EXAMPLE: THE BIDEN PLAN FOR LEADING THE DEMOCRATIC WORLD TO MEET THE CHALLENGES OF THE 21ST CENTURY. Joe Biden for President: Official Campaign Website. https://joebiden.com/americanleadership/

Ikenberry, G. J. (2011). Liberal Leviathan: The Origins, Crisis, and Transformation of the American World Order. Princeton University Press. https://www.jstor.org/stable/j.ctt7rjt2

Joe Biden. (2019, Novembro 7). Joe Biden Delivers Foreign Policy Address in New York City. https://www.youtube.com/watch?v=cH1LXd0dZ8g&feature=emb_title&ab_channel=JoeBiden

Kuperman, A. J. (2013). A Model Humanitarian Intervention? Reassessing NATO’s Libya Campaign. International Security, 38(1), 105–136.

Lu, R. G., Amy Mackinnon, Jack Detsch, Christina. (2021). What to Expect in Biden’s First 100 Days in Foreign Policy. Foreign Policy. https://foreignpolicy.com/2021/01/19/biden-first-100-days-foreign-policy-china-russia-europe-trump-climate-change/

Mazarr, M. J., Heath, T. R., & Cevallos, A. S. (2018). China and the International Order. RAND Corporation. https://www.rand.org/pubs/research_reports/RR2423.html

Mearsheimer, J. J. (2019). Bound to Fail: The Rise and Fall of the Liberal International Order. International Security, 43(4), 7–50. https://doi.org/10.1162/isec_a_00342

Nathan, A. J. (2016). China’s Rise and International Regimes: Does China Seek to Overthrow International Norms? Em R. S. Ross & J. I. Bekkevold (Eds.), China in the Era of Xi Jinping: Domestic and Foreign Policy Challenges (pp. 165–195). Georgetown University Press; JSTOR. http://www.jstor.org/stable/j.ctt1c2crg2.11

Tomás Infante. (2020). A Política Externa da Administração Trump: «Bilateral Transactionalism» e os seus Impactos na Ordem e Sistema Internacionais. ORBIS – International Relations Studies Association. https://orbisirsa.pt/a-politica-externa-da-administracao-trump/

Zakaria, F. (2020). The New China Scare—Why America Shouldn’t Panic About Its Latest Challenger. Foreign Affairs, 99(1), 52–69.

Zhao, S. (2018). A Revisionist Stakeholder: China and the Post-World War II World Order. Journal of Contemporary China, 27(113), 643–658. https://doi.org/10.1080/10670564.2018.1458029