A Política Externa da Administração Trump

«Bilateral Transactionalism» e os seus Impactos na Ordem e Sistema Internacionais

                                                                                                                                     As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.

       “America First”. Foi isto que Donald Trump prometeu ao longo da campanha presidencial de 2016, e reiterou na sua tomada de posse. “America First” tornou-se o resumo da Política Externa da Administração Trump. Mas por detrás de um slogan político vago e contestado – calibrado para ser consumido internamente – esconde-se a política externa de uma administração decidida a romper com o legado da administração anterior – e, possivelmente, alterar o papel dos Estados Unidos na Ordem Internacional. Embora estudos de Política Externa se tenham, geralmente, afastado de considerações sobre os discursos e mundividências dos líderes, a figura de Trump torna-se incontornável na análise da Política Externa da sua Administração, contribuindo para isso a crescente politização do Departamento de Estado – produto dos esforços de Rex Tillerson e de Mike Pompeo e do afastamento, forçado ou voluntário, de diplomatas e oficiais de carreira de Foggy Bottom. Tudo isto nos faz questionar de que forma a mundividência de Trump – “America First” – molda a Política Externa da sua Administração, e qual é o seu impacto para o futuro da Ordem e Sistema Internacionais.

       Este artigo não procura sintetizar ou analisar todas as escolhas de Política Externa de Trump – para fazer algo dessa magnitude seria preciso, certamente, um espaço muito maior. Procura, no entanto, perceber como a mundividência da Administração Trump – consagrada no Bilateral Transactionalism – em clara discordância com décadas de policy-practice, alterou fundamentalmente a Política Externa Americana, e a forma como essas ruturas impactaram os Estados Unidos, a Ordem Internacional Liberal e o futuro do Sistema Internacional.

       Segundo Stokes (2018), a tradução académica para “America First” é o conceito de Bilateral Transactionalism. Desde a sua campanha presidencial que Trump tem sistematicamente discutido como outros Estados se têm aproveitado dos Estados Unidos – em assuntos securitários e económicos. Na perspetiva de Trump – e dos académicos e policymakers que concordam com ele – as anteriores administrações fomentavam a intervenção americana no palco global em defesa de uma agenda globalista, e não em defesa dos interesses estratégicos nacionais. Segundo H.R. McMaster – ex-National Security Adviser de Trump – e Gary Cohn – Senior Economic Adviser de Trump – o mundo não é  uma “global community” (citados em Stokes, 2018:137), mas sim uma arena de competição em que Estados e empresas participam. Isto leva a um expectável retraimento do multilateralismo, numa aposta no Bilateral Transactionalism, que recusa uma ideia transformadora e idealista das Relações Internacionais e abraça os cálculos de custo-benefício nas relações individuais que os Estados Unidos têm com outros Estados. Segundo a Administração Trump, relações bilaterais asseguram ganhos relativos para os Estados Unidos, preferindo-as ao regime económico internacional liberal – personificado pelas regras da OMC – que resultam em perdas relativas para os Estados Unidos – algo que torna claro que a mundivisão de Trump está baseada num zero-sum game no qual apenas os Estados Unidos podem ganhar.

       Desta abordagem resultam claras continuidades na Política Externa, como seria expectável naquilo que concerne aos interesses estratégicos vitais do Estado Americano. A presença americana no Afeganistão aumentou – algo que Trump prometera, tal como Obama, não fazer. O pivot estratégico do Atlântico para o Pacífico, começado por Obama, foi mantido e intensificado, com um grande foco na China e no conflito entre as Coreias. Depois de ter criticado fortemente a NATO e os líderes europeus, Trump aumentou o orçamento do European Reassurance Initiative de 1.4 mil milhões para 4.7 mil milhões (2018), e conseguiu que os Estados da NATO aumentassem os seus orçamentos de defesa. A estratégia de combate ao Terrorismo no Médio Oriente permaneceu, no geral, idêntica à de Obama, e Israel permaneceu um foco da Política Externa Americana, algo que tem sido uma constante desde há décadas. No entanto, a administração Trump não ficará para a História pelas suas continuidades, mas sim pelas ruturas que protagonizou e que têm o potencial para impactar seriamente a Ordem e Sistema Internacionai

       Não é o foco deste artigo analisar criticamente políticas externas específicas, mas sim a forma como o Bilateral Transactionalism defendido pela Administração Trump influenciará o futuro dos Estados Unidos e do Mundo. Poderíamos estar páginas a criticar a forma como o processo de quasi-normalização das relações com a Coreia do Norte não resultarão em qualquer tipo de processo de paz, apenas na legitimação de um dos regimes mais obscuros do mundo. Ainda mais páginas poderíamos passar a criticar a abordagem da Administração ao Médio Oriente, desde o desastroso abandono dos Curdos, à decisão incendiária de reconhecer Jerusalém como capital de Israel – através da recolocação da Embaixada Americana em Israel – ou da forma como o apoio à normalização das relações de Israel com o Mundo Árabe – até agora UAE, Bahrain e Sudão – puseram de parte a questão palestiniana, e por isso serão sempre incapazes de resolver o conflito Israelo-Árabe – por este estar totalmente alicerçado na independência integral da Palestina e, pelo menos, da retirada israelita dos territórios anexados. Quase todas as mais polémicas decisões de Política Externa de Trump poderiam ser dissecadas de diferentes formas e através de diversos prismas, mas o argumento deste artigo é que todas elas são o resultado natural do Bilateral Transactionalism. Conflitos – como o da Coreia ou os do Médio Oriente – necessitam de abordagens multilaterais complexas, com um foco claro nos ganhos a longo prazo, algo que o Bilateral Transactionalism de Trump dificilmente consegue alcançar. Uma solução para o conflito Israelo-Árabe – algo que não é esperado de nenhuma Administração americana devido à complexidade do tema, mas a qual Trump prometeu – teria que envolver, necessariamente, Israel, a Palestina e todos os Estados Árabes – idealmente, todos os Estados Muçulmanos. Mas o interesse americano a curto prazo, como seria os negócios de armas com a Arábia Saudita e a sua aliança contra o Irão, impede-o de obrigar um aliado a fazer importantes concessões – imaginemos o que seria se a Arábia Saudita não comprasse armas aos Americanos se estes a obrigassem a negociar o reconhecimento do Estado de Israel. A mesma visão essencialmente transacionista condenou o Iran Nuclear Deal: um acordo eficaz na prevenção da nuclearização do Irão, e assinado por toda as Grandes Potências, foi abandonado pelo facto de Trump considerar que os Estados Unidos não colhiam benefícios do Acordo, apenas prejuízos.

       Mas as maiores ruturas na Política Externa existem noutros campos, sendo particularmente visível no campo económico e humanitário. Quebrando décadas de tradição americana na defesa do Comércio Livre, Trump abandonou a NAFTA, o TPP e o TTIP, e impôs tarifas que começaram trade wars sem precedentes com a China e a União Europeia. O abandono do Paris Agreement sobre o Clima – assinado por quase todos os Estados do Mundo, incluindo a China – ou da OMS – ambas decisões que ainda podem ser revertidas – demonstram a forma como o Bilateral Transactionalism influenciou as decisões de Política Externa de Trump: os Estados Unidos estavam a abdicar de mais do que aquilo que estavam a receber, e por isso romperam com os consensos internacionais sobre alterações climáticas e saúde pública. Por último, a abordagem à promoção da Democracia e dos Direitos Humanos tem sido outra falha da Administração Trump, havendo uma identificação entre Trump e líderes mundiais autoritários – Putin, Erdogan, Xi Jinping, Rodrigo Duterte – e uma clara despreocupação por crises humanitárias – como é exemplo disso o silêncio de Trump sobre os campos de concentração de Uyghurs em Xinjiang. Abordagens e fóruns multilaterais tendem a preocupar-se mais com assuntos normativos – pela existência de mecanismos de Socialização e, até certo ponto, Condicionalidade –  do que uma abordagem alicerçada no Bilateral Transacionalism de Trump – aquilo que se pode perder economicamente ao criticar um ditador é maior do que o que se pode ganhar, embora o preço seja quase sempre parte da nossa reputação.

       Quais são então os impactos a longo prazo na Ordem e Sistema Internacional? A Ordem Internacional Liberal é aquela em que o impacto é, naturalmente, mais visível. A Ordem Internacional saída da Segunda Guerra Mundial – e reforçada depois do fim da Guerra Fria – é um produto quase exclusivamente Americano, alicerçado nos seus princípios, valores e interesses políticos, securitários e económicos. Mas a abordagem da Administração Trump encontra-se, de forma clara, em confronto ao discurso idealista da Ordem Internacional Liberal – e defendido pelos Estados Unidos –, baseada na liberdade, na promoção da democracia, na abertura económica, na cooperação securitária e no multilateralismo. Para Ikenberry (2001), as Ordens Internacionais são self-reinforcing e tornam-se crescentemente robustas. A abertura da Ordem Internacional Liberal cria incentivos para que todos participem nela, e à medida que os anos passam os custos de a romper ou perturbar tornam-se cada vez maiores. Teóricos Liberais regozijaram a Globalização e o efeito que esta teria no fortalecimento da Ordem Internacional – afinal, quem é que não ganhava com a Globalização? Anos antes, Gilpin (1981) tinha avisado que a Ordem Internacional Liberal era auto-destrutiva, porque a sua abertura – aquilo que para Ikenberry a tornava self-reinforcing – acabava por transferir ganhos económicos para Potências Emergentes, subsequentemente interessadas em suplantar a Ordem Internacional da Potência Hegemónica vigente. Aquilo para o qual nem Ikenberry nem Gilpin estavam preparados era para que a destruição da Ordem Internacional Liberal viesse de dentro, de líderes que quebrassem o consenso entre Estados Democráticos e questionassem o Comércio Livre, a Promoção da Democracia ou outros valores essenciais à Ordem Internacional Liberal – na sua essência, qualquer backsliding democrático no Ocidente resultaria num enfraquecimento da Ordem Internacional. Muito menos estariam Gilpin e Ikenberry à espera que o líder que quisesse quebrar a Ordem Internacional Liberal fosse o líder do Estado incumbido de a defender e preservar, os Estados Unidos. Ao quebrar com os consensos ocidentais acerca da Ordem Internacional Liberal e romper com os seus compromissos para com o Mundo, Trump está a abrir um precedente para que outros Estados a questionem – o espaço dos Estados Unidos dentro dela. Líderes autoritários à volta do Mundo – como Putin, Erdogan ou Xi Jinping – estão mais do que nunca encorajados para agir contra a Ordem Internacional e as suas normas, por não esperarem respostas fortes dos Estados Unidos. Depois de sucessivos ataques à NATO e à União Europeia – algo que, sem dúvida, Putin agradece –, Angela Merkel anunciou “times in which we can fully count on others are somewhat over (…) Europeans must really take our destiny in our own hands … we have to fight for our own future ourselves” (Stokes, 2018:136). A quebra de confiança entre a Europa e os Estados Unidos poderão ditar o resfriamento da relação que fundou a Ordem Internacional, abrindo espaço para uma União Europeia que, não confiando nos Estados Unidos para a proteger, procure aumentar as suas capacidades defensivas – possivelmente levando a uma maior autonomia da União face aos Estados-Membro. Outro exemplo, seria a forma como a Política de Comércio Internacional de Trump – e os seus sucessivos ataques à OMC – poderão ditar, no futuro, um regresso ao Protecionismo Económico que a atual Ordem Internacional quis evitar, com graves consequências económicas e sociais que nenhum de nós pode prever.

       O Bilateral Transactionalism, uma abordagem que propõe proteger e aumentar o poderio americano face ao resto do mundo, poderá ainda ter graves consequências para o posicionamento dos Estados Unidos no Sistema Internacional – principalmente na manutenção do título de Superpotência. Qualquer retraimento dos Estados Unidos do palco global pode ter efeitos na balança de poder internacional. Para Mearsheimer (2001), não existem Superpotências Globais, apenas Hégemons Regionais, que tentam evitar o aparecimento de outros Hégemons noutras regiões do mundo, sob pena de desestabilizar a balança de poder. O retraimento dos Estados Unidos – no pensamento de Mearsheimer, o único Hégemon Regional no Sistema Internacional atual –, levaria a uma natural ascensão da China a Hégemon Regional, procurando desequilíbrios na balança de poder internacional e no pensamento de um Realista Ofensivo a potenciais conflitos armados. Gostaria, no entanto, de me focar no pensamento de Buzan (2011), que olha não só para questões de poder, mas também de legitimidade internacional. Segundo Buzan (2011), para se ser Superpotência não basta ter as capacidades económicas e militares para manter uma presença forte à volta do mundo – algo que os Estados Unidos têm certamente –, é necessário que os outros Estados lhe reconheçam legitimidade para ser Superpotência. Buzan (2011) previu que se a Política Externa Americana começasse a ser fortemente criticada e se os Estados Unidos deixassem de ser vistos como um exemplo a seguir – falando, por exemplo, da manutenção de Guantánamo como uma mácula grave na reputação americana –, então poderiam perder legitimidade internacional e deixar de ser a Superpotência. Ambas estas condições estão perfeitamente presentes nos dias de hoje. Isto levaria a uma ascensão facilitada da China, não a Superpotência, mas a uma Grande Potência de igual valor – aproximando-se ao pensamento realista de Mearsheimer. Perante a “queda” dos Estados Unidos, também a União Europeia procuraria – como Merkel já sinalizou – garantir a sua própria defesa, e se tornaria uma Grande Potência de igual importância. Por sua vez, outros Estados, como a Índia, poderiam aparecer como Grandes Potências Regionais. O resultado seria um Sistema Internacional Multipolar, naturalmente pouco estável e possivelmente menos pacífico do que o atual.

       Naturalmente, estas são apenas algumas visões das potenciais consequências da Administração Trump, outros autores terão outras visões e é, de qualquer das maneiras, demasiado cedo para entender de que forma estes quatro – e hipoteticamente mais quatro – anos impactarão o futuro da Ordem e Sistema Internacionais. Não se pode, contudo, negar o clima de incerteza que hoje existe na Ordem Internacional – não só devido a Trump, mas também devido à atual pandemia e aos desafios de outros líderes com tendências anti-globalistas –, e cujos efeitos no Sistema Internacional não podem ainda ser previstos, algo que, no entanto, não nos deve impedir de analisar possíveis cenários e previsões e, acima de tudo, preparar para essas alterações, que têm o potencial para alterar profundamente o mundo como o conhecemos.

Tomás Infante
Mestrando em CPRI – especialização em Relações Internacionais

NOVA-FCSH

Bibliografia

Beeson, M. (2020) Donald Trump and Post-Pivot Asia: The Implications of a “Transactional” Approach to Foreign Policy. Asian Studies Review, 44(1), 10-27.

 

Buzan, B. (2011). A World Order Without Superpowers: Decentred Globalism. International Affairs, 25(1), 3-25.

 

Gilpin, R. (1981). War and Change in World Politics. Cambridge: Cambridge University Press.

 

Hall, J. (2020). In search of enemies: Donald Trump’s populist foreign policy rhetoric. Politics, 0(0), 1-16.

 

Hill, M. & Hurst, S. (2020) The Trump presidency: continuity and change in US foreign policy. Global Affairs, 6:1, 1-3.

 

Ikenberry, G. J. (2001). After Victory: Institutions, Strategic Restraint, and the Rebuilding of Order after Major Wars. Princeton: Princeton University Press.

 

Ikenberry, G. J. (2008). The Rise of China and the Future of the West: Can the Liberal System Survive? Foreign Affairs, 87(1), 23-37.

 

Ikenberry, G. J. (2018). The end of liberal international order? International Affairs, 94(1), 7-23.

 

Mastanduno, M. (2018). Liberal hegemony, international order, and US foreign policy: A reconsideration. The British Journal of Politics and International Relations, 0(0), 1-8.

 

Mearsheimer, J. J. (2001). The Tragedy of Great Power Politics. New York: W. W. Norton & Company.

 

Mearsheimer, J. J. (2010). The Gathering Storm: China’s Challenge to US Power in Asia. The Chinese Journal of International Politics, 3, 381–396

 

Posen, B. R. (2018). The Rise of Illiberal Hegemony: Trump’s Surprising Grand Strategy. Foreign Affairs, 97(2), 20-27

 

Stokes, D. (2018). Trump, American hegemony and the future of the liberal international order. International Affairs, 94(1), 133–150.