A (in)visibilidade de Refugiados LGBTQI+ na UE

 As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.

Em 2015 o Conselho Europeu estabeleceu que é importante que a Europa continue a ser um refúgio seguro para os que fogem de perseguições” (CE, 2015). Ora, numa altura em que a securitização das fronteiras por parte de vários Estados-Membros e a politização do discurso anti-imigrante, como a Hungria, impedem o acolhimento de pessoas refugiadas, a UE predispõe-se a aumentar as condições de acolhimento com a criação do Novo Pacto em Matérias de Asilo. Esta predisposição surge numa altura em que a UE se enche de discursos de ódio e de promoção da homofobia, bifobia e transfobia, dificultando em muito a criação de um refúgio seguro para as pessoas refugiadas queer (PRQ). É, por este motivo, crucial o combate e o distanciamento total dos ideais discriminatórios e exclusivistas, só possível com o desenvolvimento de políticas, diretivas e legislação que reconheça as vulnerabilidades e necessidades das PRQ. 

Mais, não existem dados oficiais sobre pedidos de asilo por motivos LGBTQIA+, já que nem todos os países questionam a orientação sexual/identidade de género (IGOS). Outro problema surge com os dados da Eurostat, existindo apenas as opções de género “feminino” ou “masculino”, o que anula o potencial de expressão de outras identidades.

Ainda assim, assume-se que exista uma parte considerável de pedidos com motivações associadas à IGOS. Neste sentido, o asilo queer está indiretamente concedido na legislação da UE, e desde 2008 foram lançadas pela ONU (2012) uma lista de procedimentos de tratamento de PRQ, que consideram importante não só compreender apenas as características das PRQ, mas a alta probabilidade de serem alvo de perseguição por motivos que variam devido ao contexto cultural, económico, familiar, político, religioso e social. Também neste sentido, o TEDH estabeleceu, no caso X, Y e Z, que as PRQ se inserem dentro da categoria de um grupo particular e que a IGOS causar perseguição – concluindo ser um motivo válido para requerer asilo, e que a necessidade de comprovar a IGOS fica ao encargo do país recetor (Wieland e Alessi, 2020). 

Esta conceção indireta não se espelha, no entanto, com medidas específicas, o que propicia diferentes interpretações e práticas mediante a legislação do país de acolhimento. Apesar da orientação sexual ser reconhecida e aceitada em praticamente – ainda que não em todos – os países da UE, apenas 3 países reconhecem a condição intersexo – com medidas apenas em algumas regiões em Espanha –, e a identidade de género não só não é reconhecida legalmente em 8 países, como apenas a Dinamarca deixou de considerar a identidade de género não normativa uma doença do foro psicológico. 

No caso da Hungria, não existe um clima político favorável à receção de PRQ. É evidente o historial político de repressão de direitos LGBTQIA+, só sendo reconhecida a orientação sexual, e mesmo neste caso, existe uma repressão arbitrária de direitos – mais de metade da sociedade não considera que pessoas homossexuais devem ter os mesmos direitos que heterossexuais (ILGA-Europe, 2020a). Verifica-se ainda que a retórica de propaganda anti-LGBTQIA+ é altamente instrumentalizada, e.g., o Presidente do Parlamento afirmou: “morally there is no difference between the behaviour of a pedophile and the behaviour of someone who demands [same-sex marriage and adoption]” (ILGA-Europe, 2020a). Ao nível do acolhimento de pessoas refugiadas, a Hungria é o país com mais pedidos recusados em primeira instância em 2019. A situação agrava-se com casos de PRQ, com apenas 17% de medidas de asilo de proteção de PRQ e 33% das medidas em prol de direitos LGBTQIA+ (ILGA-Europe, 2020b).

No caso da UE, e em específico da Hungria, verifica-se uma falta de atenção com as necessidades básicas das PR(Q) (Andrade et al., 2020). Apesar de aconselhado que as acomodações devam ter em consideração a IGOS de forma a evitar discriminação, tal não é praticado por todos os Estados-Membros, o que torna as PRQ suscetíveis de violência e discriminação por parte de outras pessoas refugiadas. Para além disso, o acesso a saúde deve considerar as necessidades específicas das PRQ, nomeadamente a possibilidade de existirem traumas e problemas psicológicos, aliados a necessidades de afirmação de género – e.g., a Hungria não concede apoio especializado a PRQ trans, mesmo que já estejam a fazer tratamento hormonal aquando da deslocação forçada. 

Mais, os processos são bastante demorados, levando a que, o período entre o pedido de asilo e a resposta final possa levar anos. Este período, para a maioria das PRQ, é passado sem condições de proteção mínimas – ignorando a sua vulnerabilidade –, muitas vezes em campos de refugiado ou campos de detenção. Aliás, durante o mês de junho de 2021, conhecido como o mês do Pride e da celebração LGBTQIA+, o Samos LGBTQI+ Group anuncia nas suas redes sociais que uma das PRQ de Samos tentou suicidar-se pela demora no processo de pedido de asilo aliada à discriminação sentida.

Também no caso húngaro se verificou, após o aumento dos fluxos migratórios em 2015, a criação de zonas de trânsito, i.e., campos de detenção com condições deploráveis para limitar a circulação de pessoas refugiadas. Esta decisão foi altamente criticada pelas ONGs e, após o TEDH decidir no caso O.M. que as detenções de PRA não podem superar os 28 dias, a Hungria finalmente fechou estes campos (HRW, 2020).

Uma das causas para o arrastar dos processos é a necessidade de avaliar a credibilidade dos pedidos de asilo mediante análise do esforço em fundamentar o pedido, do carácter explicativo dos dados apresentados, da validade da informação e da rapidez no pedido de asilo. Estes critérios levam a que vários pedidos queer sejam descreditados (Danisi et al., 2020), quer seja porque grande parte das PRQ desconhece poder pedir asilo por motivos IGOS, quer seja por ser esperado que PRQ forneçam informação sobre a sua IGOS, mesmo quando não lhes é questionado. Quando estes não o fazem, assume-se que a informação é deliberadamente ocultada, sendo exigido sempre provas de IGOS, o que levou países como a Hungria a exigir “provas infalíveis”, e.g., a apresentação de detalhes privados da sua vida ou de provas documentais (Wieland e Alessi, 2020). Por este motivo, o TEDH definiu que, para os critérios de credibilidade, testes médicos intrusivos – utilizados na Hungria – são ilegais, e.g., o phallometric test que pretende verificar a reação da PRQ a pornografia ou o Rorschach. Outra das premissas aplicadas pelos Estados-Membros é o argumento da discrição, i.e., a ideia de que as PRQ devem esconder a sua identidade para evitar perseguição (Danisi et al., 2020).

Ora, considera-se que IGOS pode gerar perseguição, mediante ameaça à vida da pessoa. A necessidade de comprovação faz com que só seja analisada legislação repressiva e visível, através de listas de países seguros (Andrade et al., 2020). A utilização destas listas é um problema gritante, sendo que a informação não só ignora represálias sentidas por questões IGOS – situação claramente evidente em países membros como a Hungria –, como não considera perseguição passiva e mais difícil de provar – neste contexto, o benefício da dúvida é essencial, mas raramente concedido.

Para além disso, é muitas vezes impossível oferecer provas irrefutáveis por três razões: (a) os indivíduos podem não se sentir confortáveis em autoexprimir-se por medo de represálias, discriminação, ou por stress pós-traumático; (b) os indivíduos podiam estar no armário, i.e., escondiam a sua IGOS no país de origem, o que significa que não existem provas oficiais; e (c) são usados noções hétero e homonormativos, o que leva à rejeição das PRQ que não se inserem nos estereótipos pré-definidos (Danisi et al., 2020). 

Não só a falta de políticas e legislação, como também a tentativa de apagar as especificidades LGBTQIA+ retiram atenção à vulnerabilidade sentida por PRQ e marginaliza-as ainda mais, tanto pela sua condição refugiada como por ser queer. Aliás, a luta pelos direitos de PRQ não é recente. Numa Europa que se considera democrática, respeitadora e igualitária, é inadmissível a postura de países como a Hungria, um país onde PRQ sabem que não podem passar, sob pena de terem que pedir asilo num local que já sabem a priori que as vai rejeitar e extraditar para locais onde a sua vida está em perigo. Embora o equilíbrio entre cooperação e autonomia estatal seja a grande dificuldade da UE, nada se deve sobrepor ao garante de direitos humanos, como o direito à dignidade e à liberdade, nem mesmo a soberania estatal. Países como a Hungria violam constantemente os direitos LGBTQIA+, pelo que a sua presença e impunidade representa o desrespeito pelos valores europeístas. Ora, apesar dos avisos e das investigações recorrentes à legislação húngara por parte da UE, a verdade é que a legislação e as medidas de inclusão estão cada vez mais repressivas, quer seja para pessoas LGBTQIA+, quer para pessoas refugiadas. A constante neutralidade defendida pela UE e até mesmo por Portugal e a politização dos direitos humanos, só legitimam os atentados à integridade física sofridos por PRQ.

Existem lacunas em todo o processo da UE, e as decisões de conceção de asilo não podem ser tomadas de ânimo leve, numa análise simplista ou devido a preconceitos, estigmas e preconceções. São vários os relatórios que pedem a implementação de legislação e medidas direcionadas aos asilos queer – aliás, a aplicação de grande parte das diretrizes apresentadas pela ONU (2012) mantém-se necessária, e as recomendações feitas pelo projeto SOGICA são apropriadas e devem ser seguidas. Para além disso, não se pode aceitar esta postura de um Estado-Membro, principalmente um que ativamente persegue e reprime pessoas queer, sem qualquer respeito pela sua integridade, tornando a vivência impossível para aqueles que fogem ao padrão do bom cidadão branco húngaro. Enquanto as resoluções e recomendações sobre PRQ não forem vinculativas e sanções para países que fazem atentados aos direitos humanos, continuará a existir discriminação e dificuldades acrescidas no só no país de onde fogem, mas também na Europa – local que, até conseguir garantir a defesa dos direitos humanos, estará longe de ser considerada um refúgio seguro para aqueles que invisibiliza, nomeadamente as PRQ. 

Mónica Correia

Mestranda em Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo

NOVA-FCSH

Referências

     Andrade, Vítor Lopes, Carmelo Danisi, Moira Dustin, Nuno Ferreira, e Nina Held. 2020. «Queering Asylum in Europe: A Survey Report». kn6af. SocArXiv. SocArXiv. Center for Open Science. https://ideas.repec.org/p/osf/socarx/kn6af.html.

   

       CE, Comissão Europeia. 2015. «Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao comité económico e social europeu e ao comité das regiões – Agenda europeia da migração».

 

       Danisi, Carmelo, Moira Dustin, Nuno Ferreira, e Nina Held. 2020. Queering Asylum in Europe: Legal and Social Experiences of Seeking International Protection on Grounds of Sexual Orientation and Gender Identity. Cham: Springer. http://sro.sussex.ac.uk/id/eprint/92532/.

 

       Eurostat. 2020. «Asylum statistics – Statistics Explained». https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/Asylum_statistics.

 

   HRW, Humans Rights Watch. 2020. «World Report 2020: Rights Trends in European Union». https://www.hrw.org/world-report/2020/country-chapters/european-union.

 

     ILGA-Europe, the European Region of the International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association. 2020a. «ILGA-Europe’s Annual Review of the Human Rights Situation of Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex People covering events that occurred in Europe and Central Asia between January-December 2019.» https://www.ilga-europe.org/annualreview/2020

 

       «Rainbow Europe». 2020b. https://www.rainbow-europe.org/.

 

     ONU, United Nations High Commissioner for Refugees. 2012. «Guidelines on International Protection No. 9: Claims to Refugee Status Based on Sexual Orientation and/or Gender Identity». HCR/GIP/12/01. https://www.refworld.org/docid/50348afc2.html.

 

      Wieland, Raoul, e Edward J Alessi. 2020. «Do the Challenges of LGBTQ Asylum Applicants Under Dublin Register With the European Court of Human Rights?» Social & Legal Studies, Agosto, 0964663920946360. https://doi.org/10.1177/0964663920946360.