
As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.
A Dimensão Externa da União Europeia tem ganho cada vez mais atenção nas Relações Internacionais. Isto resulta não só do carácter peculiar da União Europeia enquanto ator no Sistema Internacional e da arquitetura institucional da Política Externa dentro das Instituições Europeias, mas também devido às potencialidades da União Europeia – exatamente por ser um ator peculiar – no Sistema e Ordem Internacionais, principalmente num momento de crescente incerteza. A Dimensão Externa da União Europeia é um tema amplo – por vezes difuso –, e que convida a debates muito diversos, desde os mais teóricos – como seria o debate em torno da actorness da União Europeia e aquilo que constitui um ator nas RI – os mais normativos – sobre aquilo que a UE deveria ser e simbolizar no Sistema e Ordem Internacionais, preconizado por académicos como François Duchêne, Hedley Bull ou Ian Manners, e ideias como a de Civil Power Europe ou Normative Power Europe (Manners, 2002) – até aos mais práticos – revolvendo em torno da explicação e subsequente crítica da arquitetura institucional da Política Externa Europeia e as suas possíveis reformas, dentro de um framework mais lato acerca do funcionamento da União Europeia e, principalmente, acerca do choque entre as suas componentes supranacionais e intergovernamentais.
Todos os debates interagem entre si, nenhum deles é independente do outro. Se defendo, por exemplo, a ideia de Normative Power Europe estou, implicitamente, a reconhecer a actorness da União Europeia no Sistema Internacional, ou se acredito que a União Europeia não é um ator no Sistema Internacional, mas sim um veículo para os interesses partilhados entre os verdadeiros atores – os Estados-Membros – (Hyde-Price, 2006) as minhas criticas acerca da Institucionalização da Política Externa Europeia serão diferentes daquelas feitas por alguém que reconhece a União Europeia enquanto ator. Enquanto mestrando que está a desenvolver uma dissertação acerca da Política Externa Europeia, tenho, naturalmente, opiniões desenvolvidas acerca de cada um destes debates – entre outros –, mas o foco deste artigo será a Arquitetura Institucional da Política Externa Europeia, aparentemente o mais simples dos temas apresentados anteriormente, mas, simultaneamente, o mais crucial para entender toda a Dimensão Externa da União Europeia, e aquele que deve servir de porta de entrada para todos os interessados na Política Externa Europeia.
A União Europeia, desde os seus começos enquanto Comunidades Europeias, tem caminhado em direção a um crescente supranacionalismo, ou seja, uma crescente cedência de soberania por parte dos Estados-Membro, criando cada vez mais áreas políticas cujo controlo está inteiramente nas Instituições Europeias, principalmente na Comissão. A Política Externa, no entanto, é uma matéria que é quase exclusivamente intergovernamental, ou seja, cujo controlo permanece nos Estados-Membro e, consequentemente, no Conselho Europeu e Conselho da União Europeia. Existem, contudo, elementos supranacionais na Arquitetura Institucional da Política Externa Europeia. O Tratado de Amesterdão introduziu o cargo de Alto Representante para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança – na altura denominado de Alto Representante para a Política Externa de Segurança Comum – e, aquando do fracasso do Tratado Constitucional – que previa a criação de um Ministério dos Negócios Estrangeiros da União Europeia –, o Tratado de Lisboa reforçou o papel do Alto Representante, fazendo-o responsável pela Política Externa Comercial e pela Política Externa e de Segurança, assumindo a Vice-Presidência da Comissão Europeia por inerência e introduzindo um corpo diplomático liderado por si, o European External Action Service. O Tratado de Lisboa é, na realidade, o melhor ponto de partida para o estudo da Política Externa Europeia, porque foi este que construiu a Arquitetura Institucional vigente na Política Externa, mantendo-a eminentemente Intergovernamental, mas reforçando os seus aspetos Supranacionais. Segundo Edwards (2013), um dos objetivos do Tratado de Lisboa era o de aumentar a eficiência da Política Externa Europeia, garantindo a eficácia da UE enquanto ator internacional, à volta de quatro objetivos: Construir capacidades para tomar decisões; garantir que a UE tem instrumentos políticos apropriados; criar um framework que facilite a ação comum; estabelecer a legitimidade de ação da União Europeia. Através de uma análise destes quatro elementos, principalmente dos dois primeiros, conseguimos perceber o porquê da Política Externa Europeia ser tão comumente criticada não pelos seus objetivos, mas sim pela sua Arquitetura.
O Tratado de Lisboa pode ter reforçado o papel do Alto-Representante e criado o EEAS, mas não diminui de forma considerável a importância de outros atores no processo de tomada de decisão, criando, para todos os efeitos, uma manta de retalhos difícil de navegar. Esta quantidade de atores na Política Externa – e a forma como a divisão de responsabilidades entre os diversos atores cria sobreposições dessas mesmas responsabilidades – criam problemas de Coerência Vertical – entre a UE e os Estados-Membro/Conselho Europeu – e Horizontal – entre Instituições, e agências, da UE (Edwards, 2013; Bicchi, 2014). Tomemos o exemplo da European Neighbourhood Policy: nesta área política, para além dos Estados-Membro – através do Conselho Europeu e do Conselho da União Europeia – e do Alto Representante/EEAS, são atores a Comissão Europeia – que controla o orçamento da ENP, o European Neighbourhood Instrument (Bicchi, 2014) –, o Comissário para a Vizinhança e Alargamento e a Agência Europeia para a Vizinhança e Alargamento – e, dependendo da área que se esteja a negociar com os Estados da Vizinhança, muitos outros Comissários e Agências podem participar no processo de tomada de decisão. A divisão de trabalho – quer político, quer tecnocrático/burocrático – resulta numa tremenda falta de eficiência do processo de tomada de decisão. Também a nível de quem representa a União Europeia, o problema da sobreposição de responsabilidades se mantém. A partilha dessa representação política com a Presidência da Comissão e a Presidência do Conselho Europeu – para não mencionar os Chefes de Estado que tendem a querer falar em nome da União Europeia – fragilizam o papel do Alto Representante – e, se não fragilizam mais, é porque a diplomacia pessoal dos antigos Altos Representantes, Javier Solana, Catherine Ashton e Federica Mogherini, muito fez para manter a centralidade da Alta Representação. Para além disso, cada Estado-Membro mantem a sua Política Externa independente – com interesses diferentes e por vezes contrastantes – da Política Externa Europeia, e, segundo Edwards (2013) o sistema multinível da UE convida a que Estados Terceiros façam lobby aos Estados-Membro e às Instituições Europeias, a fim de manipular o Sistema.
Em relação aos Instrumentos, a crítica tem muitas semelhanças à anteriormente anunciada, com diferentes atores a possuírem o controlo de diferentes instrumentos de política externa. A Comissão Europeia detém o controlo de instrumentos orçamentais, como ajudas financeiras, sanções ou melhorias na relação comercial com a UE. Estes instrumentos podem ser utilizados pelo Alto Representante, mas dependem inteiramente da Comissão Europeia – obrigando o Alto Representante a negociar com a Comissão da qual é Vice-Presidente. No entanto, são os Estados-Membro o maior fator bloqueador da utilização de uma série instrumentos, por terem o controlo de quase todo o campo da Política Externa na UE (Kelley, 2006; Tömmel, 2013; Edwards, 2013; Noutcheva, 2015). Tomemos, novamente, a ENP enquanto exemplo. O objetivo da ENP é o de promover reformas políticas nos Estados da Vizinhança, a fim de os aproximar dos padrões europeus, e a fim de conseguir isso a Comissão utiliza uma estratégia de Condicionalidade Positiva, ou seja, oferece benefícios – maioritariamente económico-financeiros – aos Estados da Vizinhança pelas suas reformas. No entanto, nos documentos fundadores da ENP está definido que pode ser utilizada Condicionalidade Negativa, ou seja, sanções pelo incumprimento dos acordos com a Comissão Europeia. A maioria dos autores considera que a ENP precisa de ambos os instrumentos para ser eficaz – não pode apenas haver prémios para quem cumpre, sem que haja prejuízos para aqueles que se encontram em situações de constante incumprimento e violação dos acordos –, mas qualquer tipo de sanção tem que ser aprovada pelo Conselho da União Europeia – pelos Estados-Membro, portanto – de forma unanime (Börzel, 2010; Noutcheva, 2015). Como é óbvio, os Estados-Membro prosseguem Políticas Externas diferentes, com interesses que podem ir contra aqueles defendidos pela União Europeia, e mostram-se relutantes a aprovar sanções contra Estados que podem ser aliados regionais. Isto torna quase impossível a utilização de um instrumento considerado crucial para que a Comissão Europeia possa conduzir a sua Política Externa.
Existindo certamente outros problemas com a Arquitetura Institucional da Política Externa Europeia, estes são aqueles que se tende a considerar como mais centrais para explicar a enorme falta de coerência e, principalmente, eficácia da União Europeia no plano internacional. Uma União Europeia que tem pretensões – abertamente articuladas – de ser uma Grande Potência no Sistema Internacional – como alternativa à crescente Bipolaridade entre EUA e China –, tem que ter uma Política Externa que seja eficaz, ou seja, que consiga manifestar resultados nos momentos oportunos. A humilhação que a UE sofreu aquando dos conflitos da Jugoslávia, em que, paralisada, viu os Estados Unidos a intervir num espaço que tinha reservado para si a fim de demonstrar o papel que a União Europeia teria num mundo pós-Guerra Fria, foi um aviso cujas recomendações foram, largamente, ignoradas. Muito se fez para que a Política Externa Europeia fosse mais eficaz: a criação do Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum, que se transformaria em Alto Representante para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança aquando do Tratado de Lisboa, a criação do EEAS, o streamline do processo de tomada de decisão e o aumento da importância das Instituições Supranacionais na Política Externa, entre outros. Mas o campo da Política Externa permaneceu atolado num pântano de ineficácia e lutas internas.
A Primavera Árabe é um excelente exemplo da forma como a ineficácia da Política Externa Europeia prejudica a UE enquanto ator internacional. A UE apresentou-se – e continua a apresentar-se – como a grande defensora da Democracia, Direitos Humanos e Cooperação no mundo. Esse papel é, aliás, natural para um projeto político que saiu dos escombros da Segunda Guerra Mundial, crente que a Democracia e a Cooperação eram as peças fundamentais para a construção da paz num continente devastado por sucessivos conflitos. A ENP, criada em 2004, é acima de tudo, segundo a própria Comissão, um instrumento na defesa da Democracia numa Vizinhança caracterizada por regimes autoritários. A ENP, explicitamente, vê a Sociedade Civil dos Estados da Vizinhança como atores importantes, os quais a União Europeia tem o dever de interagir e defender. Ainda antes da criação da ENP, existia o Euro-Mediterranean Partnership – ou Processo de Barcelona –, cuja abordagem multilateral à vizinhança a sul – ou seja, aos Estados do Norte de Africa e Médio Oriente – tinha como objetivo alimentar a cooperação naquela região, aproximando-a da União Europeia e dos valores que esta defende (Tömmel, 2013). Mas quando a Primavera Árabe começou – uma série de protestos, revoltas e revoluções populares, alimentadas por grupos da Sociedade Civil defensores da Democratização e da deposição dos autocratas decanos dos Estados do Norte de África e Médio Oriente –, a União Europeia, mesmo entendendo a oportunidade que aquele evento significava para a sua projeção e legitimação no quadro internacional, ficou totalmente paralisada. A inação da União Europeia é verdadeiramente notável, principalmente quando nos apercebemos da multiplicidade de atores externos que descendeu sobre o Norte de África e Médio Oriente depois da Primavera Árabe – incluindo Estados-Membro da União Europeia! A ENP sofreu algumas reformas em reação a esta inação, mas até hoje não demonstraram ter tido efeito (Noutcheva, 2015; Pomorska e Noutcheva, 2017).
A mesma falta de eficácia pode ser vista na relação à Ucrânia ou à Geórgia, dois Estados – um de Leste e outro do Cáucaso – que manifestaram intenções de vir a ser Estados-Membro, mas que caíram em conflitos armados com a Rússia e que, em grande parte, tiveram muito pouco apoio por parte da União Europeia. Tivesse sido a Ucrânia – por ser indubitavelmente Europeia, ao passo que a Geórgia se encontra geograficamente isolada do resto da Europa – tratada da mesma forma que a Roménia ou a Bulgária foram – Estados cujas economias e democracias estavam atrasadas em relação aos Estados da Europa Central e de Leste que tiveram as suas adesões em 2004 –, talvez tivesse sido possível evitar o conflito que hoje conhecemos no Leste da Ucrânia. Mas a sua inclusão na ENP, demonstrou que a UE via a Ucrânia como a sua fronteira externa e que por muito que a Ucrânia cumprisse os acordos da ENP – e se aproximasse do padrão Europeu – nunca deixaria de ser vista como a fronteira externa da UE.
O Mundo apresenta enormes e variados desafios para a União Europeia na sua Dimensão Externa – para lá daqueles que se colocam na sua Dimensão Interna. Num Mundo em mudança – aparentemente numa constante encruzilhada –, a UE tem, novamente, oportunidades para se afirmar na cena internacional como uma Grande Potência para um novo Mundo. E quais são esses desafios para o futuro? Num momento em que o processo de Globalização é crescentemente questionado, a União Europeia tem que ter respostas aos ataques e críticas constantes de outras Potências ao valor da Cooperação Internacional e do Multilateralismo – valores que estão na base da UE e sem os quais ela não consegue funcionar. A dependência europeia face aos Estados Unidos, principalmente naquilo que concerne aos campos da segurança e defesa, terão que ser analisados e repensados depois de quatro anos de difícil relação com a Administração Trump. Também a relação com a China terá de ser reanalisada, face à sua ascensão – que utilizando a Ordem Mundial Liberal, terá inevitavelmente como objetivo desvirtuá-la e reconstrui-la. A Rússia permanece uma ameaça clara na sua oposição à União Europeia, e o futuro da UE terá, necessariamente, de passar pela diversificação das suas fontes energéticas – idealmente, a sua substituição por energia renovável produzida em solo europeu –, a fim de diminuir a dependência energética em relação à Rússia e ao Cáucaso. Também a luta pela democratização e defesa dos Direitos Humanos na Vizinhança terá que ser repensada, a fim de conseguir ser mais eficiente e eficaz – passar dos discursos dos líderes europeus para a ação no terreno. Todos estes desafios – apenas alguns daqueles que a UE enfrenta no futuro próximo – precisaram de uma Política Externa alicerçada numa Arquitetura Institucional funcional, eficaz e reformada de forma a que a UE se consiga afirmar como um ator central na Política Internacional.
Tomás Infante
Mestrando em CPRI – especialização em Relações Internacionais
NOVA-FCSH
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