A Indústria da Moda? A agravar desigualdades? Groundbreaking.

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Não será preciso o conhecimento de Miranda Priestly, personagem representada pela icónica Meryl Streep no filme “O Diabo Veste Prada”, para que a indústria da Moda, avaliada em 2.4 biliões de dólares, seja reconhecida como uma das mais poluentes do mundo. De facto, estima-se que só a indústria petrolífera ultrapasse os níveis de poluição da indústria da Moda. Deste modo, e atendendo aos problemas ambientais e sociais (i.e. humanitários) associados, é relevante estudar a Moda e todo o seu sistema de valores de uma forma holística, onde se privilegia um aprofundamento sobre a indústria em questão e, nomeadamente, as causas que justificam o consumo de marcas de fast fashion.

Este artigo foca-se no modelo de fast fashion, pelas implicações socioeconómicas que este impõe a nível global. No entanto, não são menosprezados também os problemas inerentes, e igualmente penosos, do modelo praticado pelas marcas de luxo.

Mas o que é, ao certo, fast fashion? Sumariamente, é um modelo de negócio que consiste na produção rápida e barata de artigos de moda cuja utilização por parte do consumidor assumirá um caráter temporário, se não único, na sua esmagadora maioria. Este modelo resulta em fenómenos como, por exemplo, a transformação das duas estações anuais a que estávamos habituados – Outono/Inverno e Primavera/Verão –, para as quais as marcas de moda criam coleções de artigos, em cerca de 52 micro-estações por ano – ou, melhor dizendo, 52 semanas. Quer isto dizer que, regra geral, uma marca de fast fashion, como a Primark ou a Zara, terá todas as semanas pelo menos um novo artigo disponível nas suas lojas e websites. Porém, como não será certamente de admirar, nem tudo acerca do modelo de fast fashion é tão glamoroso porquanto o mesmo não só implica plágio do trabalho dos criadores das peças originais, mas também, e principalmente, a indevida exploração de recursos naturais e dos seus trabalhadores e populações do Sul Global.

Devido a pressões por parte de organizações não-governamentais, aliadas a e exacerbadas por uma nova consciência ambiental e ao crescimento de uma nova forma de consumo mais sustentável – particularmente agora devido à situação pandémica –, assim como ao crescente interesse dos fundos de investimento económico em investir em marcas “verdes” (i.e. marcas cujos valores correspondem aos critérios ESG – Environmental, Social and Corporate Governance), assistimos a iniciativas como a H&M Conscious ou a Join Life da Zara. Contudo, as marcas de fast fashion têm ainda um longo caminho a percorrer para se tornarem verdadeiramente sustentáveis. Embora tentem já promover-se como mais “verdes”, através de greenwashing, a realidade é que ainda é bastante normalizado o uso de combustíveis fósseis na transformação de matérias-primas, nomeadamente na produção de fibras sintéticas como o poliéster e o nylon, bem como o uso de algodão não-orgânico, o qual implica o uso de pesticidas e inseticidas e de quantidades imensas de água. Porém, a insustentabilidade destas marcas não se prende apenas pelo  seu processo de produção de artigos, tendo nomes como a H&M, a Nike e a Burberry, por exemplo, queimado stock não-vendido de modo a manter a exclusividade da marca (Robinson, 2020).

Os níveis ambiental e humanitário entrelaçam-se ao analisarmos os inúmeros casos semelhantes ao do rio Li, no sul da China, onde toneladas de água residual não-tratada são anualmente despejadas pelas fábricas têxteis, expondo os seus trabalhadores e as comunidades locais a químicos tóxicos e potencialmente letais.

Por outro lado, existe ainda uma severa exploração dos trabalhadores da indústria têxtil, especialmente nos países do Sul Global, os quais trabalham em condições precárias e perigosas. De modo a assegurar o menor preço possível dos artigos para os consumidores nos países do Norte Global, bem como a maior margem de lucro possível para as marcas, estes trabalhadores não são, ainda, devidamente recompensados pelo seu trabalho. Assim, o modelo de fast fashion potencia desigualdades económicas extremas visto que os trabalhadores não são diretamente beneficiados pelo valor que criam, ficando os lucros concentrados no “topo” da cadeia de fornecimento, isto é, nas marcas.

Esta não tem, porém, de ser a realidade. A título de exemplo, após uma queda dos salários dos trabalhadores da indústria têxtil em termos reais entre 2001 e 2011 no Myanmar, foi conseguida uma maior adequação destes salários por consequência da ação conjunta de sindicatos industriais, organizações governamentais e 30 marcas europeias e norte-americanas. A ação coletiva assegurou ao governo birmanês que estabelecer um salário mínimo que satisfizesse todas as partes atrairia empresas internacionais (Oxfam, 2016). Não obstante a importância de um esforço constante no sentido de melhorar as condições dos trabalhadores da indústria têxtil, o exemplo anterior ilustra como as empresas, sindicatos e governos nacionais poderão trabalhar em conjunto de modo a garantir salários mais justos para os trabalhadores e, consequentemente, combater as desigualdades económicas entre os países do Norte e Sul Global.

Por sua vez, no Norte Global, a fast fashion oferece apenas um disfarce temporário para os problemas socioeconómicos. A necessidade de dar ao consumidor médio um maior poder de compra, no sentido de este ser capaz de comprar um maior número de artigos do que seria há apenas 25 anos, através do consumo de fast fashion, ao invés do consumo de artigos de maior qualidade, demonstra como tal aumento do poder de compra é apenas uma ilusão. Ao ter acesso apenas a quantidade, o consumidor perceciona o seu próprio poder de compra enquanto mais elevado ao comprar múltiplos artigos de moda de baixo preço e qualidade do que ao comprar apenas dois artigos de preço e qualidade mais elevados por ano, embora necessite de substituir os primeiros mais frequentemente. 

Como tal, o modelo de fast fashion, muitas vezes considerado um grande “democratizador” da indústria da moda devido à dinâmica see now-buy now que cria, apenas aparenta beneficiar o seu consumidor. Embora este tire proveito do modelo em questão a curto prazo, a longo prazo o benefício revela-se apenas uma ilusão que o mantém iludido acerca do seu poder de compra enquanto as marcas lucram ao acentuar o fosso não só entre as classes económicas mais pobres e mais ricas dentro destes países, mas também entre os países do Norte e Sul Global, ao explorar os seus recursos naturais e humanos.

Em conclusão, dado o estado atual da indústria da Moda e, especialmente, a influência desproporcional que esta exerce nos países do Sul Global, quer a nível socioeconómico quer ambiental, são fundamentais esforços para colmatar as desigualdades agravadas e camufladas pela fast fashion, não só por parte do consumidor médio, mas também por parte dos governos dos países do Norte Global e, obviamente, da própria indústria. No que concerne o consumidor, é necessário que este, para além de pressionar as marcas que consome a adotar práticas mais sustentáveis, tente tornar-se ele próprio o mais consciente possível das suas verdadeiras necessidades bem como mais cuidadoso com os artigos que compra. Por sua vez, os governos dos países do Norte Global deverão, não só apostar na reeducação dos seus cidadãos ao nível do consumo, de modo a que os mesmos privilegiem qualidade sobre quantidade, mas também, e fundamentalmente, combater as desigualdades socioeconómicas que levam os seus cidadãos a recorrer a artigos de fast fashion. Estes devem ainda procurar responsabilizar as empresas sediadas nos seus países que não ajam de forma ética. Finalmente, é necessária uma remodelação da indústria da Moda, de forma a que esta valorize práticas mais sustentáveis e éticas ao invés de tendências efémeras e marcas que valorizam o lucro acima de tudo o resto. Embora ainda haja muito trabalho por fazer, o recente aumento da valorização consumidores por alternativas a fast fashion, como thrifting e revenda de artigos de moda, deverá com certeza a ajudar a levar o navio a bom porto.

Beatriz Santos
Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais

NOVA-FCSH

Bibliografia

Boston Consulting Group, Sustainable Apparel Coalition e Higg Co. (2020). Weaving a Better Future: Rebuilding a More Sustainable Fashion Industry After COVID-19. Disponível em: https://apparelcoalition.org/wp-content/uploads/2020/04/Weaving-a-Better-Future-Covid-19-BCG-SAC-Higg-Co-Report.pdf ; Data de acesso: 21 de fevereiro 2021

 

Business of Fashion e McKinsey & Company (2020). The State of Fashion 2021. Disponível em: https://www.mckinsey.com/~/media/McKinsey/Industries/Retail/Our%20Insights/State%20of%20fashion/2021/The-State-of-Fashion-2021-vF.pdf ; Data de acesso: 21 de fevereiro 2021

 

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European Parliamentary Research Service (2020). Textile workers in developing countries and the European fashion industry: Towards sustainability? Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2020/652025/EPRS_BRI(2020)652025_EN.pdf ; Data de acesso: 21 de fevereiro 2021

 

Oxfam (2016). Women and the 1%: How extreme economic inequality and gender inequality must be tackled together. Disponível em: https://www-cdn.oxfam.org/s3fs-public/file_attachments/bp-women-and-the-one-percent-110416-en_0.pdf ; Data de acesso: 21 de fevereiro 2021

 

Robinson, Z. (2020). Clean Clothes: Why We Need a Fashion Detox. Disponível em: https://www.areweeurope.com/stories/clean-clothes-why-we-need-a-fashion-detox-zoe-robinson ; Data de acesso: 21 de fevereiro 2021

 

 

ThredUp (2020). 2020 Fashion Resale Market and Trend Report. Disponível em: https://www.thredup.com/resale/static/thredup-resaleReport2020-42b42834f03ef2296d83a44f85a3e2b3.pdf ; Data de acesso: 21 de fevereiro 2021