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Desde que o futebol surgiu enquanto desporto de massas que tem sido influenciado pelos interesses dos Estados, e este Mundial não é exceção. Num mundo em que o futebol é o desporto rei, disputa-se muito mais para além das 4 linhas, sendo muitas vezes uma ferramenta dos interesses geopolíticos de alguém, e entre os escândalos de corrupção e apoio a regimes pouco democráticos por parte da FIFA, é razoável que se pergunte, o que se ganha com um Mundial no Qatar?
Para percebermos como se geopolítica e o Mundial se encaixam nos interesses catarianos temos de recorrer a um conceito chamado sportwashing, que resumidamente é o ato em que através do desporto se tenta melhorar a perceção que o mundo tem de um Estado (Hambali, 2020). Um caso bem-sucedido de sportswashing, é a Rússia no pós-Mundial de 2018, até 2022.
O mesmo tenta fazer o Qatar com a edição deste ano do Mundial, sendo que, como quase todos os países ricos do Médio Oriente, há muito que o Qatar e vizinhos usam a sports diplomacy – o uso deliberado de eventos desportivos por Estados para criar uma imagem internacional favorável (Cafiero & Alexander, 2022) – para melhorarem a sua imagem internacional. A Península Arábica detém muitos dos centros competitivos de vários desportos, desde pistas de Fórmula 1 a centros de estágios para equipas de futebol de alto nível. Além disso, detém também fatias enormes dos direitos televisivos das emissões dos jogos de algumas das principais ligas, caso da beIN Sports, subsidiária da Al Jazeera, que por sua vez é financiada pelo Qatar. São ainda detentores de vários clubes de topo europeu, como são os casos do Manchester City (detido por um dos principais oficiais do governo dos Emirados Árabes Unidos) ou do Paris Saint Germain (detido por uma das principais figuras do desporto no Qatar, sendo também presidente da Federação de Ténis do Qatar e da beIN Media Group, por exemplo). Este forte investimento pode ser explicado por dois fatores: por um lado a vontade de passar o Qatar por um país moderno, progressista e saudável (o oposto do que como os Estados do Golfo são estereotipados), podendo assim aumentar certos setores, como o investimento estrangeiro e o turismo; e, por outro, aumentar a sua influência a nível internacional, o que poderá trazer benefícios comerciais, económicos, etc., com outros Estados.
Desta forma é possível perceber a importância da organização do Mundial correr bem: estão em jogo alguns interesses catarianos. Porém, esse objetivo não tem corrido da melhor forma para o Qatar. O backlash sofrido com as denúncias da exploração, discriminação e pobres condições de trabalho dadas aos trabalhadores para construírem as infraestruturas necessárias para o Mundial, e que resultaram em milhares de mortes nestes trabalhadores, na sua maioria imigrantes (BBC News, 2022), bem como com as afirmações de governantes catarianos claramente contra a comunidade LGBTQ+ (Mason, 2022), tem colocado o sportswashing e o soft power do Qatar em perigo. Apesar disto, a FIFA tem dado garantias de que os direitos individuais serão respeitados. No entanto, esta situação tem sido explorada por alguns dos seus vizinhos, tornando o Mundial num “campo de batalha” entre o Qatar, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. Para analisar esta disputa, é preciso: 1) recuar até à Primavera Árabe e o apoio dado por Doha a grupos terroristas no Médio Oriente (nomeadamente o apoio dado à Irmandade Muçulmana no Egito, ou outros grupos islâmicos na Síria que colocavam em causa os interesses sauditas); e 2) compreender a proximidade que tem com o Irão, um rival claro da Arábia Saudita. As tensões escalaram quando a já referida Al Jazeera passou a permitir a emissão de vozes dissidentes dos países vizinhos. Com o forte investimento no que seria o Mundial, Abu Dhabi e Ríade mudaram a estratégia para cortar o acesso do Qatar ao Mundial, com leaks dos e-mails do embaixador emiradense a Washington. Estes leaks mostraram um grande número de planos com o objetivo de retirar a capacidade de Doha em receber a Copa. Um desses planos consistia no corte total de relações comerciais e diplomáticas entre o Qatar e uma coligação de 5 estados, liderados por Ríade e Abu Dhabi, o que dificultou o acesso a materiais necessários para a construção da infraestrutura para o mundial. Outra forma através da qual a Coligação tentou ‘’tirar’’ o Mundial ao Qatar foi pressionando a FIFA para que o Mundial fosse partilhado com os vizinhos, e coincidentemente, a dada altura, o presidente da organização responsável pela tutela do futebol mundial traçou planos de alargamento das seleções qualificadas para 48 equipas, o que tornaria impossível que o Qatar recebesse sozinho a competição (Tifo Football, 2018). Porém, esta “reformatação” do Mundial acabou por ser adiada para 2026. Esta dinâmica competitiva e securitária pode explicar que, para além de um interesse em ganhar soft power, o Mundial é uma oportunidade para Doha ganhar hard power. Dado a escala do Mundial e a possível visita de líderes de Estados dos 4 cantos do mundo, é compreensível que este evento se torne num alvo para muitos grupos extremistas ainda ativos. Desta forma, foi montada uma operação de segurança com o fornecimento de equipamento militar e com o treino às forças armadas catarianas (Ronay, 2022), mostrando que a Copa também dá resposta aos interesses securitários do Qatar.
Mas se, em resposta à organização deste Mundial, tem havido condenações tanto às afirmações da elite governamental do Qatar, como aos constantes abusos de direitos humanos por parte de organizações não governamentais (como a Amnistia Internacional), oficiais de governos ocidentais, embaixadores, e as próprias federações de futebol, por que razão não existe um boicote mais generalizado ao evento?
Como boa parte da política externa ocidental desde fevereiro de 2022, a resposta mais plausível é: energia. Não seria a primeira vez que, desde a invasão da Ucrânia, a Europa põe de parte a sua crença nos direitos humanos para ter acesso às reservas energéticas do Golfo Pérsico. Olhe-se para a receção de Macron ao príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman em julho deste ano, 4 anos depois do assassinato de Jamal Kashoggi, num encontro em Paris para falar sobre abastecimento de energia à Europa (France24, 2022). Assim, será de estranhar que a falta de ação concreta contra o Mundial de Qatar se ligue com as necessidades energéticas europeias? Olhe-se para os números… O Qatar tem a segunda maior reserva mundial de gás natural, 23.8 biliões de metros cúbicos, e com uma produção anual de 171 mil milhões de metros cúbicos, sendo o quarto maior produtor a nível mundial com planos para se tornar o maior por 2026. Já em 2021 era responsável pelo abastecimento de 21% das necessidades energéticas europeias e é esperado que a percentagem e o número bruto aumentem para colmatar o declínio do gás russo no mercado europeu (Fanack, 2022). Face ao peso já existente do Qatar enquanto fornecedor energético europeu e a importância que o Mundial tem para a política externa de Doha, não é de se estranhar a falta de ação concreta, afinal não é boa ideia antagonizar quem aquece e ilumina as casas europeias.
Concluindo, este Mundial para além de um evento crucial para os interesses geopolíticos catarianos, é também uma ótima oportunidade para lavar a imagem internacional do Qatar e ganhar influência num período de reconfiguração do sistema internacional, dando a oportunidade para o fortalecimento das capacidades de segurança catarianas. Porém, o que o Qatar ganha de influência, países como a Arábia Saudita podem-na perder, até fruto da proximidade de Doha a Teerão, o que tem resultado numa disputa regional que tudo tem feito para que o Mundial falhe. No entanto, os piores danos aos objetivos catarianos têm sido autoinfligidos com as constantes violações de direitos humanos e declarações contra a comunidade LGBTQ+. Pode-se mesmo dizer que a chama do soft power do Qatar só tem diminuído e é seguro afirmar que se não fosse a necessidade europeia de manter a casa quente no inverno, ela já se teria apagado.
Mário Santos
Licenciado em Ciência Política e Relações Internacionais
NOVA-FCSH
Bibliografia
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Ronay, B. (2022, 14 de Outubro). Forget ‘sportswashing’: Qatar 2022 is about military might and hard sports power.Obtido de The Guardian: https://www.theguardian.com/football/blog/2022/oct/14/forget-sportswashing-qatar-2022-is-about-military-might-and-hard-sports-power
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