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Muitas foram as mudanças que ocorreram no acesso ao voto em Portugal desde o seu primeiro processo eleitoral em 1821, para a eleição dos deputados às Cortes Constituintes, consequentes da Revolução Liberal de 1820. Resultam de alterações de constituições, de regras, claro – mas estas mudanças normativas são apenas a representação de um conjunto de ideias que as sustentam. A cada regulamento está subjacente uma determinada de conceção de tipo de representação ideal (Almeida, 2016), que é como quem diz uma ideia de democracia. Como foi variando a nossa ideia de democracia nacionalmente, e como é que a concretização da versão atual dessa mesma ideia parece estar a escapar entre os nossos dedos nos dias de hoje?
Comecemos com a pergunta mais fácil – qualquer pessoa capaz de utilizar o Wikipédia consegue chegar à conclusão que houve, até aos dias de hoje, 6 textos constitucionais (dos quais uma carta constitucional, e as restantes constituições): 1822, 1826, 1838, 1911, 1933 e 1976. Três Constitucionais de uma Monarquia, outras três de uma Républica. Todas elas consagram o direito ao voto, quase todas eles com sufrágio direto em eleições Parlamentares, excecionando a Carta Constitucional, antes das alterações que resultam do Ato Adicional de 1852, e quando há um chefe de Estado a eleger (ou seja, quando se trata de uma Républica e não de uma Monarquia), variando em termos de eleição direta (1933 & 1976, e a de 1911 após uma alteração em 1918) ou indireta (1911, e a de 1933 após revisão de 1959). Contudo, a visão que eu gostava de vos apresentar ao longo deste artigo foca-se não nesta lógica institucional, mas sim na dimensão do ‘cidadão’ – nomeadamente, nas pessoas que são consagradas como tal em cada constituição. Como altera o direito ao voto até chegarmos ao sufrágio universal que resulta da Revolução de Abril?
No que toca a textos do período monárquico, encontramos um retrocesso. Em 1822, surge como um direito exclusivo aos homens com mais de 25 anos (ou maiores de 20 desde que sejam casados, oficiais militares, bacharéis formados ou clérigos de ordens sacras), sendo excluídos, para além de todas as mulheres, os filhos-famílias (homens adultos dependentes economicamente dos pais), os criados de servir, os regulares (excluindo os das Ordens militares e os secularizados) e todos os que não soubessem ler com menos de 17 anos em 1822 (se, chegando aos 25 anos não soubessem ler nem escrever, não teriam este direito). A Carta Constitucional de 1826, mais conservadora, limita-o trazendo o sufrágio censitário – podem votar cidadãos portugueses (nascidos em Portugal ou naturalizados) que tivessem, no mínimo, quatrocentos mil réis de renda líquida.
Em 1838 mantém-se o elitismo económico (embora o torne menos ‘elitista’), juntamente com os critérios de 1822: têm direito a votar os homens maiores de 25 anos com uma renda líquida anual de oitenta mil réis, excluindo menores de 25 anos [salvo quando estes têm mais de 21 anos e são a) casados, b) bacharéis formados, c) oficiais do Exército ou da Armada ou d) clérigos de ordens sacras], criados de servir, os libertos (ex-escravos), os pronunciados pelo júri (considerados culpados de algum crime) e os falidos que não houvessem conseguido provar a sua boa fé.
A Constituição de 1911 consagrou não a promessa republicana de sufrágio universal, mas o caos. É verdade que é com esta constituição em vigor que surge o primeiro voto feminino em Portugal (Carolina Beatriz Ângelo) – contudo, isto ocorre apenas devido à ambiguidade do decreto de lei de 14 de Março do mesmo ano: são eleitores os cidadãos portugueses maiores de 21 anos, residentes em território nacional e que soubessem ler ou escrever ou fossem chefes de família [excluindo 1) as praças de pré em serviço efetivo, os indigentes e todos os que não possuíssem meios próprios para a sua subsistência, 2) os pronunciados com trânsito julgado, 3) os interditos, por sentença, da administração da sua pessoa ou bens, os falidos não reabilitados e os incapazes de eleger por efeito de sentença penal e 4) os portugueses naturalizados.]. Não excecionando este decreto as mulheres, e sendo Ângelo de naturalidade portuguesa, maior de idade, sabendo ler e escrever, médica e viúva, e por isso chefe de família, estavam assim criadas as condições para a contestação que permite a Beatriz votar nas eleições para a Assembleia Constituinte a 28 de Maio. No entanto, e ao contrário do que ocorrera noutros países (ver Matilde Hidalgo de Procel, no caso do Equador), as mulheres acabaram por ser excluídas do sufrágio através da nova Lei Eleitoral de 1913, atrasando assim o processo de emancipação do voto feminino em Portugal.
Estranhamente, é no período de ditadura militar que se verifica essa ‘emancipação’, mesmo que muitíssimo limitada: o decreto de 5 de Maio de 1931 apenas atribui este direito às mulheres maiores de 21 anos de idade que fossem chefes de família (viúvas, divorciadas ou judicialmente separadas de pessoas e bens com família própria, casadas cujos maridos estivessem ausentes nas colónias ou estrangeiro) – assim, a constituição de 1933 surge com a aprovação de (poucas) mulheres, cumprindo uma promessa que o partido republicano se tinha demonstrado incapaz de concretizar. E claro, em 1976 consagra-se o sufrágio como universal, igual e secreto e reconhecido a todos os cidadãos maiores de 18 anos, ressalvadas as incapacidades da lei geral, sendo este simultaneamente um exercício pessoal e um dever cívico.
É evidente que, tendo em conta que alterações ao sufrágio resultam não apenas de alterações constitucionais, mas também de decretos de lei, ligar determinadas constituições a ideias de democracia tem uma aplicabilidade reduzida. Mas aqui não se pretende analisar todos os decretos individualmente, e o seu respetivo impacto, por isso perdoem esta limitação analítica. Peço ainda que assumam esta palavra, Democracia, não como o conceito de um regime democrático representado como uma democracia eleitoral, liberal, maioritária, participativa, deliberativa e igualitária, mas sim como um regime onde se encontra como soberano o povo – demo cratos. O sufrágio e as suas alterações representam a evolução do conceito de povo, merecedor de poder e, por isso, capaz de exercê-lo eleitoralmente, seja este de forma ativa, como foi sido desenvolvido ao longo deste texto, ou passiva, ou seja, que permite que um individuo seja não apenas eleitor, mas também eleito – nomeadamente, através da figura do cidadão.
Se em 1822 havia o intuito de expansão do direito de voto para todos os homens livres que alcançavam determinada maturidade ‘racional’ (fruto da idade, do casamento, da profissão), este rapidamente foi limitado pela ‘maturidade económica’ com o voto censitário. Este processo torna o cidadão não um individuo parte de uma nação, mas o individuo com posses passíveis de ser reconhecidas pela sociedade – uma oligarquização. E se a instauração da Républica ficou marcada pela promessa de sufrágio universal, a Primeira Républica foi limitada e condenada a falhar pela incapacidade de cumprir essa mesma promessa – nasce cercada, e, ao invés de deixar cair essa cerca, abrindo o regime através do alargamento do direito de voto, escolhe ativamente fortalecer as paredes que rapidamente o sufocam. E dos destroços dessa mesma Républica nasce um regime autoritário, inicialmente militar mas sempre com o conceito de Família como seu sustento. É exatamente este conceito que convida todos os chefes de família a usufruírem de direito de voto (independentemente do impacto que este voto tivesse), incluindo pela primeira vez o segundo sexo.
E acabará a nossa história com o sufrágio universal, com o direto de voto consagrado a todos os cidadãos maiores de 18 anos com capacidades para o exercer? A realidade atual prova que o impacto do voto não acaba com a sua dimensão de direito, e assume particular relevância como um dever. Se as primeiras eleições portuguesas foram marcadas por taxas de participação elevadas, das mais elevadas no mundo (92% de voter turnout em 1976), as eleições consequentes viram a participação eleitoral atingir valores menores que a média europeia (em 2015, 55,8%; em 2019, 48,6% [taxa oficial]).
Não é um cenário único, mas também não é apenas representativo de uma tendência global – a descida acentuada de participação no caso português torna-o relevante e merecedor de destaque. Aliás, as assimetrias no exercício do voto podem levar à sub-representação sistemática de determinados grupos (Cancela, 2019) – nomeadamente, através de uma maior incidência de abstenção entre jovens e no grupo de indivíduos entre os 30 e 44 anos; e com a desigualdade económica a tornar-se um fator explicativo deste fenómeno cada vez mais relevante (Cancela, 2019).
Estará presente a possibilidade de um ressurgimento de oligarquização política, desta vez não associada ao restringimento do direito ao voto, mas na escolha de não o exercer pelas camadas mais prejudicadas por este elitismo? Esta conclusão estaria muito para além do escopo desta breve viagem pela história, limitada pelo tempo e paciência de quem aguentou até às últimas palavras deste artigo. Apenas algo se apresenta como certo – a tua representação, e a representação dos teus interesses e valores, depende do teu voto. E se acreditas que o povo deve ser soberano, e se partes do princípio que pertences a este grupo como cidadão português, como poderás deixar o dia de 24 de Janeiro em branco?
Adriana Vizinha
Aluna de Licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais
NOVA-FCSH
Referências
Almeida, José Pedro. «A evolução do Direito de Sufrágio na história Constitucional Portuguesa», Working Paper #65, Observatório Político, publicado em 02/11/2016
Cancela, J., & Magalhães, P. C. (2020). As bases sociais dos partidos portugueses. 45 anos de democracia em Portugal.
Cancela, J. C. G., & Vicente, M. (2019). Abstenção e Participação Eleitoral em Portugal. Câmara Municipal de Cascais.
Mariano, F. (2018, Dezembro). A Longa Caminhada do Voto Feminino Em Portugal. História, Jornal de Notícias, pp. 12–35.