A Anarquia nas Relações Internacionais

Se pudéssemos escolher uma palavra que servisse para individualizar a área disciplinar das Relações Internacionais (RI), ou seja, uma palavra que mais demarcasse esta área de todas as restantes, a anarquia seria uma boa candidata. Não que este termo seja oriundo das RI, ou que seja sequer mais frequentemente citado dentro das suas fronteiras disciplinares; simplesmente trata-se de um conceito que assume um elevado peso dentro destas fronteiras, talvez mais do que em qualquer outra disciplina na qual também costume ser invocado. A anarquia – entendida, essencialmente, enquanto a ausência de governo – constitui um dos mais salientes conceitos das RI, ajudando a salientar a própria área.

Este acrescido destaque da anarquia nas RI pode ser compreendido de uma maneira mais adequada se nos colocarmos, justamente, na perspetiva de outra disciplina: a Ciência Política, cujo principal objeto de estudo são as ordens políticas internas. Nestas ordens, vigoram estruturas de poder verticais e hierárquicas, com relações de poder entre governantes e governados formalizadas, institucionalizadas e, portanto, explícitas, quando não óbvias. Deste modo, falar de anarquia em termos de política interna tanto nos pode remeter para as instâncias em que esta organização hierárquica desabou no passado, como pode servir para aludir à possibilidade e ao espectro – sempre presentes – de estes desabamentos voltarem a ocorrer no futuro; em qualquer um dos casos, está implícito de que a hierarquia se trata (ou se deverá tratar) do status-quo da vida política interna das comunidades territoriais, enquanto a anarquia constitui (ou deverá constituir) a exceção.

Ora, no palco internacional, objeto de estudo das Relações Internacionais, a situação é distinta: a anarquia trata-se, de uma forma relativamente consensual, do status-quo político que tem vindo a vigorar ao longo de séculos; já a hierarquia (na forma de um hipotético governo internacional, por exemplo) constitui para alguns a meta política rumo à qual os esforços internacionais se deverão dirigir, enquanto para outros não passa de um cenário a evitar a todo o custo.

Muito se deve a Kenneth Waltz pela divulgação do conceito de anarquia no léxico das RI, na segunda metade do séc. XX. O teórico norte-americano propôs uma tipologia na qual distingue entre os três níveis (ou as três “imagens”) onde podem ser localizadas as causas das guerras entre Estados: a “primeira imagem” advoga que a guerra deriva da constituição e “natureza” humanas, a “segunda imagem” situa as causas da guerra ao nível da instituição do Estado e a “terceira imagem” postula que as guerras derivam da própria estrutura anárquica do sistema internacional. Waltz assume o seu lugar no seio desta última “imagem”, argumentando que a recorrência histórica dos conflitos internacionais se deve, acima de tudo, ao contexto internacional anárquico no qual os Estados se encontram: sem uma entidade hierarquicamente superior, cada Estado, no limite, pode apenas contar com os seus próprios esforços para garantir qualquer tipo de sucesso em eventuais conflitos com os demais (Waltz, 2018, p. 159). Para Waltz, enquanto entre unidades estatais persistir a anarquia, a guerra será sempre uma possibilidade.

No final da década de 70, este conceito viria a constituir o elemento basilar da teoria das Relações Internacionais de Waltz, até hoje uma das mais divulgadas dentro de toda a área disciplinar. Já que é a estrutura internacional anárquica que, segundo o teórico, condiciona fundamentalmente a conduta das unidades estatais, a sua teoria representa uma tentativa de isolar os efeitos específicos daquela estrutura sobre estas unidades; como refere Waltz, a anarquia tem, desde logo, um efeito altamente uniformizador sobre as ações e o comportamento dos Estados, sendo responsável pela profunda constância na textura da política internacional ao longo de toda a sua história: “As relações que prevalecem internacionalmente raras vezes se alteram no tipo ou na qualidade. Em vez disso, são marcadas por uma persistência estonteante, uma persistência que devemos esperar que dure enquanto nenhuma das unidades competidoras for capaz de converter a arena internacional anárquica numa arena hierárquica.” (Waltz, 2002, p. 96).

Para além de constituir o mais importante elemento em toda a construção teórica waltziana, a anarquia é também valorizada enquanto princípio político ordenador por parte do norte-americano, portadora de algumas virtudes específicas que lhe acabam por conferir um caráter potencialmente estável; por exemplo, a constante possibilidade de, num ambiente anárquico, a força vir a ser usada por parte de qualquer Estado, a qualquer momento, “limita as manipulações, modera as exigências, e serve como um incentivo para a resolução das disputas” entre si (Waltz, 2002, p. 159). Devido a este louvor, Waltz integra-se seguramente no conjunto de autores que favorece a preservação do princípio internacional anárquico, contra tentativas de transformar as relações internacionais num domínio hierárquico.

Também Hedley Bull constitui um proponente da anarquia na política internacional, argumentando contra alguns dos seus críticos. Para Bull, muitos dos autores que criticam a anarquia fazem-no por derivarem os seus argumentos das experiências anárquicas entre indivíduos: tal como estes últimos têm a necessidade de se subordinarem a uma autoridade hierárquica comum para poderem viver em paz, também os Estados, segundo estes autores, deverão procurar sujeitar-se a uma autoridade destas no plano internacional, de modo a atingirem uma vida social igualmente ordeira. No entanto, para Bull, a experiência da anarquia entre Estados possui um conjunto de características que a acabam por distinguir, fundamentalmente, de uma anarquia entre indivíduos, sendo por isso inadequado recorrer a esta última experiência para criticar aquela – por exemplo, os Estados são autossuficientes em termos económicos de uma forma que os indivíduos jamais poderão ser, o que lhes permite darem-se mais ao luxo de coabitarem numa anarquia (Bull, 1995, p. 83).

Aquilo que Bull traz para o debate em torno deste conceito nas RI é, em poucas palavras, um maior grau de nuance, ao enfatizar o conjunto de práticas e instituições que são exclusivos à anarquia entre Estados, chegando mesmo ao ponto de a transformarem numa “sociedade internacional”: “The working of international society must be understood in terms of its own, distinctive institutions. These include international law, diplomacy and the system of balance of power.(Bull, 1995, p. 90). Com efeito, se a anarquia representa, como dissemos, um dos mais salientes conceitos dentro de todas as RI, certamente que tal saliência muito deve a estas práticas e instituições distintivas, que as RI – mais do que qualquer outra área – se concentram em estudar.

 

Talvez seja, precisamente, esta margem de nuance que o debate em torno da anarquia e da hierarquia no palco internacional mais necessite; talvez toda a nuance seja imprescindível para conseguirmos construir uma representação mais complexa – e, à partida, mais fiel, ou pelo menos mais interessante – daquil\o que foi, é e será a história das relações internacionais, no seu caráter particular e distintivo. No mínimo, podemos dizer que será ao disputarmos o debate nestes moldes que mais facilmente conseguiremos deixar de tratar a anarquia e a hierarquia enquanto categorias absolutas e, por isso, absolutamente antagónicas; pelo contrário, mais cativante será vermos a anarquia e a hierarquia enquanto dois polos num longo eixo, obviamente opostos, mas com todo um conjunto de tonalidades entre si. A distinção proposta pelo construtivista Alexander Wendt entre três tipos de “culturas” anárquicas internacionais – hobbesiana, lockeana e kantiana (Wendt, 1999) – constitui um dos mais notáveis exemplos deste tipo de perspetiva, ilustrando as potencialidades que um debate minucioso em torno da anarquia pode trazer para as RI.

 

Lembremo-nos, aliás, que este debate não se trava apenas entre investigadores ou estudiosos das RI, para quem estas potencialidades são, frequentemente, de mero escopo teórico e intelectual – theory for theory’s sake –, mas também entre os atores e decisores políticos propriamente ditos que, afinal, ultrapassam estas barreiras teóricas, transformando as palavras em atos e a teoria em prática. Para si – e, por extensão, para todos nós – o propósito de um debate em torno da organização política internacional será sempre normativo, o que é outra forma de dizer que, para todos nós, as potencialidades e as promessas deste debate servirão sempre para abrir os horizontes do que fazemos e poderemos vir a fazer na política. Para isso, certamente, toda a minúcia será inestimável e toda a nuance será bem-vinda.

Ricardo Neves
Aluno de Mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais

NOVA-FCSH

Bibliografia

Bull, H. (1995). Society and Anarchy in International Relations (1966). In J. D. Derian (Ed.), International Theory: Critical Investigations (p. 75-93). London: Macmillan Press.

Waltz, K. (2018). Man, the State, and War: A Theoretical Analysis (Anniversary Edition). New York: Columbia University Press.

Waltz, K. (2002). Teoria das Relações Internacionais (Edição Portuguesa). Lisboa: Gradiva Publicações.

Wendt, A. (1999). Social Theory of International Politics (1ª ed.). Cambridge: Cambridge University Press.